Após duras críticas de setores políticos e de entidades da sociedade civil, o presidente Jair Bolsonaro revogou um decreto que autorizava a realização de estudos para nortear a participação de entidades privadas na construção, gestão e operação de unidades básicas de saúde (UBSs). A revogação foi publicada, ontem, em edição extra do Diário Oficial da União (DOU). As unidades, que são a porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS), seriam incluídas no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), criado em 2016.
“Faltam recursos financeiros para conclusão das obras, aquisição de equipamentos e contratação de pessoal. O espírito do Decreto nº 10.530, já revogado, visava o término dessas obras, bem como permitir aos usuários buscar a rede privada com despesas pagas pela União”, escreveu o presidente no Facebook no fim da tarde de ontem. Bolsonaro disse “a simples leitura do decreto em momento algum sinalizava para a privatização do SUS”. “Em havendo entendimento futuro dos benefícios propostos pelo decreto, o mesmo poderá ser reeditado”, acrescentou.
De acordo com o Ministério da Economia, os estudos teriam duração de seis meses para avaliar as demandas pelo país e apresentar resultados. Neste período, o governo federal entraria em contato com estados e municípios para apresentar a proposta.
Segundo o ministério, não seria necessário um projeto de lei para colocar a inativa em prática, pois “no Brasil já existem concessões patrocinadas na área de saúde, sendo, portanto, já recepcionadas pela atual legislação”.
O decreto foi assinado pelo presidente e pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e publicado no DOU na terça-feira. No fim da tarde de ontem, o Ministério da Saúde informou que as UBSs foram incluídas no programa a pedido da pasta. “A participação privada no setor é importante diante das restrições fiscais e das dificuldades de aperfeiçoar o modelo de governança por meio de contratações tradicionais”, ressaltou, informando que atualmente há mais de 4 mil UBS com obras inacabadas que já consumiram R$ 1,7 bilhão de recursos do SUS.
Em nota conjunta, os ministérios da Economia e da Saúde informaram que “devem ser focados em arranjos que envolvem a infraestrutura, os serviços médicos e os serviços de apoio, de forma isolada ou integrada sob a gestão de um único prestador de serviços, o que possibilita estabelecer indicadores e metas de qualidade para o atendimento prestado à população. Os serviços seguirão sendo 100% gratuitos”, ressaltaram.
Os planos do Executivo, porém, foram frustrados por uma enxurrada de críticas. Parlamentares de oposição se movimentaram e chegaram a apresentar Projetos de Decreto Legislativo (PDL) para suspender a medida. “Nós não aceitaremos a arbitrariedade do presidente da República”, afirmou o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto. “O que precisamos é fortalecer o Sistema Único de Saúde”, frisou.
Reações
O decreto provocou reações até no mundo artístico. O assunto foi um dos mais comentados nas redes sociais, com a hashtag #DefendaoSUS em primeiro lugar dos trending topics do país. Nomes como Lulu Santos, Fernanda Abreu, Luísa Sonsa, Anitta, Ludmilla, Giovanna Ewbank, Cleo Pires, entre tantos outros, se manifestaram ao contrário dos estudos.
Diretor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), Oswaldo Yoshimi Tanaka viu o decreto com receio. “Em PPP, é feita uma concessão para fazer melhorias e a empresa espera um retorno. A nossa UBS é a porta de entrada para o SUS. Não tem cabimento fazer investimento para depois cobrar para entrar no sistema”, disse, frisando que a Constituição Federal prevê que o SUS é universal e gratuito.
O ex-diretor da Fundação Nacional da Saúde (Funasa), Leandro Mello Frota afirmou que o decreto que acabou revogado falava em uma parceria entre o Estado e entes privados, e não na privatização em si. “Neste modelo, o governo não perde sua prerrogativa e sua responsabilidade. O SUS é público”, disse. Para Mello, mesmo que a proposta fosse levada adiante, qualquer tentativa de privatização seria interditada pelos demais Poderes.
A professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro Patrícia Sampaio ressaltou que o decreto apenas incluiu as UBSs no PPI para fins de elaboração de estudos e alternativas de parceria. “Me parece que essas leituras de que é para privatizar o SUS são leituras apressadas, porque não é isso”, disse. Patrícia pontuou que já existem, no Brasil, algumas experiências com PPPs em hospitais, como na Bahia. (Colaborou Maíra Alves)
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Para Conass, faltou debate
Em nota, o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) também condenou a iniciativa do governo, alegando que o decreto “deixa sérias dúvidas quanto a seus reais propósitos”. O órgão criticou, ainda, a falta de debate em torno da medida. “Por força de lei, decisões relativas à gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) não são tomadas unilateralmente. Elas devem ser fruto do consenso entre os níveis federal, estadual e municipal, sob pena de absoluta nulidade”.
Na nota, o presidente do Conass, Carlos Lula, a forma de gestão da Atenção Primária à Saúde (APS) precisa ser preservada de qualquer lógica de mercado. “O decreto apresentado não trata de um modelo de governança, mas é uma imposição de um modelo de negócio”, criticou.
Como argumento, o Conass enfatizou o papel da atenção primária à saúde (APS) para a população. “É uma política pública que alcança diretamente 160 milhões de pessoas, com efeitos inegáveis na redução das taxas de mortalidade e morbidade”, destacou Carlos Lula. De acordo com o conselho, mais de 53 mil equipes e 270 mil agentes comunitários de saúde atuam em todo o território brasileiro.
O Conass reforçou a necessidade de um maior orçamento à saúde primária. Neste ano, dos recursos da Saúde, 22% foram previstos para a atenção primária. Já em 2021, o percentual estimado é de 17%. “Acreditamos ser primordial ampliar o orçamento para a área, de forma a garantir a oferta de cuidados aos brasileiros, sobretudo num cenário pós-pandemia”, observa a nota do órgão.