ILÍCITO

Cresce o mercado ilegal de destilados durante a pandemia

Pesquisa mostra que, na pandemia, houve aumento de atividades ilícitas relacionadas às bebidas alcoólicas, até contrabando. Previsão é de que o comércio irregular terá elevação de 10,1% em 2020, comparado com 2019. Setor defende reforma tributária para frear infrações

Israel Medeiros* Edis Henrique Peres*
postado em 25/10/2020 07:00
 (crédito: Gobah Marques/Divulgação)
(crédito: Gobah Marques/Divulgação)

O mercado ilegal de bebidas alcoólicas destiladas deve crescer 10,1% até o fim de 2020, em comparação com 2019. Isso representa 130,7 milhões de litros de álcool puro. Os números são da pesquisa Álcool Ilícito na América Latina — Modelo de Impacto da Covid-19, realizada pela consultoria Internacional Euromonitor, com dados compilados até setembro. Segundo o levantamento, durante a pandemia, houve crescimento em todas as atividades ilícitas relacionadas às bebidas, inclusive, contrabando.

Um dos fatores para essa elevação, aponta a pesquisa, é que a evasão fiscal impulsiona o volume e o valor dos destilados ilícitos. Em 2017, a perda total com o mercado ilegal no setor de bebidas alcoólicas foi de R$ 10 bilhões. Destes, R$ 5,5 bi eram referentes às perdas fiscais do álcool destilado, sendo R$ 1,22 bilhão apenas no mercado da cachaça, segundo o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac). Em 2020, o crescimento mostrou-se mais significativo devido à mudança dos canais de fornecedores, pois muitos consumidores passaram a usar o comércio eletrônico para adquirir bebidas.

Outro fator é o aumento da desigualdade de renda no período pandêmico, o que diminuiu o poder de compra dos brasileiros, levando consumidores assíduos de bebidas a procurar produtos mais baratos. Os altos preços de destilados legais devem-se, segundo representantes do setor, aos altos impostos. O mercado ilegal, por sua vez, dribla a taxação e, por isso, oferece produtos abaixo do valor de mercado.

Carlos Lima, diretor-executivo do Ibrac, ressalta que são vários os motivos que fazem com que as pessoas e produtores cooperem com o mercado ilegal. “Às vezes, a empresa vai para o mercado ilegal ou opera nesse mercado por falta de informação, por não ter conhecimento da legislação vigente”, diz. “Mas há a parte de produtores que acaba indo para ilegalidade por não conseguir sobreviver em um mercado de alta carga e complexidade tributária. É essa alta carga que mais impulsiona o mercado ilegal de bebidas alcoólicas.”

Lima ressalta, também, a falta de penalidades mais duras para aqueles que operam no mercado ilegal. “Quando a gente olha as sanções às quais essas pessoas estão sujeitas, elas são brandas. É necessário que haja penas mais duras para aqueles que praticam esses crimes. Além disso, tem o controle de fiscalização. Há muito o que melhorar do ponto de vista de fiscalização de produção de bebidas alcoólicas no Brasil”, enfatiza.

Segundo o Anuário da Cachaça de 2020, pesquisa realizada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o número de estabelecimentos de cachaça e aguardente registrados caiu 22,26% entre 2018 e 2019. No ano passado, os estabelecimentos registrados totalizavam 1.086; enquanto, em 2018, havia 1.397. O Ibrac aponta que são produzidos, ao todo, 632 milhões de litros de cachaça por ano. Destes, 112 milhões de litros são ilegais.

Em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff (PT), as regras de tributação de bebidas alcoólicas foram alteradas, sob a justificativa de simplificar a arrecadação. O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) da cerveja — bebida mais consumida no Brasil — era de 15% e passou a ser de 6% sobre o valor do produto. Já a cobrança de bebidas destiladas, que era feita de forma diferente, foi estipulada em 25% a 30%. Segundo estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) de 2019, em quatro anos, o governo deixou de arrecadar 2,8 bilhões com a indústria de cerveja por causa da medida.

Na opinião de representantes do setor de destilados, é injusta a diferença de impostos entre as bebidas. Para resolver o problema da arrecadação e diminuir o comércio ilegal, eles defendem uma reforma tributária que garanta tributação isonômica, sem distinção do tipo de bebida.

 

Correção

De acordo com José Silvino Filho, presidente do Núcleo pela Responsabilidade no Comércio e Consumo de Bebidas Alcoólicas no Brasil, a diferença precisa ser corrigida. “Não há lógica por trás dessa ação do governo em 2015. O aumento do PIS/Cofins não serviu para contrabalançar. Além disso, grande parte das cervejarias tem produção de xaropes na Zona Franca de Manaus, o que permite uma compensação tributária, uma nova redução”, destaca. “As destiladas têm um percentual altíssimo. Quando você pega bebida alcoólica, o tratamento devia ser um só. Álcool é álcool. O problema é o volume que você ingere de cada bebida. Não há sentido nessa assimetria de tratamento tributário.”

Diretor-executivo da Associação Brasileira da Indústria da Cerveja (CervBrasil), Paulo de Tarso Petroni não concorda com as afirmações. Para ele, com o aumento de PIS/Cofins, a tributação para o setor de cerveja aumentou, o que gerou equilíbrio na arrecadação. “É uma análise equivocada. Repetidas vezes, este tema vem à tona. Eu participei, do começo ao fim, da elaboração da negociação da ‘reforminha’ em 2014, 2015. E o governo tomou a decisão de reduzir o IPI de 9% para 6%”, afirma. “No entanto, tem o PIS/Cofins, que era 3%, 4% e subiu para 13%, de maneira que a carga aumentou para a cerveja. Já no primeiro ano, em reunião com a Receita Federal, eles afirmaram que estavam satisfeitos, pois a arrecadação unitária havia aumentado.”

Ao ser questionado sobre as mudanças de uma eventual reforma tributária para a indústria da cerveja, Petroni argumenta que a simplificação de impostos seria benéfica. “O que a gente sempre pede é a simplificação e a diminuição dos tributos. As propostas em discussão juntam IPI, PIS/Cofins e ICMS em um imposto único. A questão é qual vai ser a alíquota. Com a união de impostos proposta, você simplifica toda a burocracia interna para cobrança e pagamento, mas mantém a carga tributária.”

 

“Imposto do pecado”

Roberto Ellery, professor de economia da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em reforma tributária, explica que a proposta discutida no Congresso apresenta um conceito de que todas as indústrias pagariam o mesmo imposto. “Bebidas realmente pagam mais impostos, mas setores como o de serviços poderão pagar mais impostos. Se passar como está, todo mundo vai pagar o mesmo. Mas, no caso das bebidas, entra o imposto seletivo, o chamado ‘imposto do pecado’”, diz ele, ao referir-se à ideia do ministro da Economia, Paulo Guedes, de sobretaxar produtos considerados prejudiciais à saúde.

Ellery afirma que a ideia existe em outros países, mas a sobretaxa seria vantajosa para contrabandistas, uma vez que os preços dos produtos continuariam caros. “Esse tipo de imposto existe em todo o mundo, para desestimular o consumo desses produtos. Mas, essa questão do contrabando é importante. Se os preços estão altos, fica vantajoso trazer ilegalmente ao Brasil, como ocorre com o cigarro. A polícia não consegue lidar com isso sozinha. Isso precisa ser resolvido pela autoridade tributária”, defende.

Para o economista William Teixeira, da Messem Investimentos, a correção dessa discrepância entre a tributação sobre cada setor pode ser capaz de aumentar a arrecadação do governo, sem aumentar a carga tributária. Ele afirma que, desde a redução da alíquota sobre a cerveja, em 2015, embora o consumo de bebidas seja alto, o governo não conseguiu mais alcançar uma arrecadação equivalente. “Essa desoneração, principalmente sobre o segmento de cerveja, fez com que a gente nunca mais arrecadasse tanto quanto em 2014, mesmo com o consumo crescendo”, relata. “Contudo, se a gente conseguir colocar todo esse segmento para uma taxa mais próxima, podemos aumentar a arrecadação sem aumento de carga tributária.”

 

“Há a parte de produtores que acaba indo para ilegalidade por não conseguir sobreviver em um mercado de alta carga e complexidade tributária. É essa alta carga que mais impulsiona o mercado ilegal de bebidas alcoólicas”

Carlos Lima, diretor-executivo do Instituto Brasileiro da Cachaça

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Alerta para risco à saúde

A vice-presidente do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), Erica Siu, afirma que, por não seguir as regras de vigilância sanitária e de taxação, o álcool ilegal provoca diversas consequências negativas para a saúde. “Sua composição varia amplamente, mas alguns componentes nocivos, como metanol, estão presentes em parte considerável das bebidas apreendidas e analisadas. O metanol pode causar dores de cabeça intensas, problemas de visão e, em casos mais extremos, cegueira e até a morte”, alerta.

A especialista destaca que é preciso duvidar dos preços muito abaixo do mercado e comprar de estabelecimentos comerciais de confiança. “Além disso, ter o hábito de ler os rótulos originais ajuda a identificar uma bebida falsificada”, pontua.

Erica Siu ressalta, também, os riscos do consumo abusivo do álcool durante a crise sanitária. “No contexto da pandemia da covid-19, esse uso nocivo pode enfraquecer o sistema imunológico, deixando o corpo um alvo mais fácil para doenças. Além disso, as pesquisas mais recentes têm indicado um aumento no consumo de álcool durante a pandemia, especialmente associado à tristeza ou à depressão”, diz. “É um perigo usar o álcool como ferramenta para lidar com o estresse, a ansiedade e com os problemas de forma geral. Álcool não é remédio e seu uso abusivo pode trazer impactos a curto e longo prazos para a saúde, além dos efeitos negativos ao sistema imunológico.” (IM* e EHP*)

*Estagiários sob a supervisão de Cida Barbosa

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