Outra semana de discussão intensa na imprensa, nas redes sociais, entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes, com economistas anunciando o fim do mundo e... E nada. Murro na mesa e histeria de financistas não corrigem equívocos e omissões.
Tome-se a inflação dos alimentos, puxada pelo arroz e pela carne, cujos preços dispararam. E assim foi pela maior demanda — externa, devido às importações da China, e doméstica, graças ao provisório aumento do consumo pela população com renda informal para a qual o Congresso criou o auxílio emergencial.
Tais eventos são positivos.
A pressão sobre as commodities agrícolas indica que a China voltou às compras. A demanda doméstica iluminou um enorme mercado latente, se a pobreza for enfrentada. E a inflação da comida? É mal, mas tem prazo de validade. Além de reduzido à metade, o auxílio termina em dezembro, se o governo não cortar outros gastos na lei orçamentária para ampliar o bônus do Bolsa Família e estendê-lo aos informais.
A rigor, a carestia da comida revelou a falta de planejamento das áreas econômica e social do governo. Não se concebe que os “sábios” da economia ignorassem o efeito da renda maior do que a habitualmente paga a 67 milhões de pessoas. Se conhecessem a realidade de um país em que mais de dois terços da população recebem menos de cinco salários mínimos por mês, correriam para formar estoques — a função da estatal Conab, Companhia Nacional de Abastecimento.
Mas, esse é um governo que se diz liberal na economia de um jeito peculiar: dialoga pouco com empresários, seus gurus têm a pretensão de dirigir (corrigir, diria o ministro da Economia) o que julgam ser o certo para as empresas, veem programas sociais como políticas de esquerda, buscam reformar o gasto público tirando do pobre, não da elite da burocracia, e só toparam o bônus emergencial depois que Bolsonaro intuiu que o Congresso, sob a influência do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, iria aprová-lo à sua revelia.
É este o pano de fundo das relações de Guedes e de seu liberalismo sem resultado com Bolsonaro, que descobriu a questão social como mais útil ao seu projeto político do que os delírios antissistema da extrema-direita que ele aprecia. A esta altura, afora os traders da dívida pública e do real depreciado, ninguém acha graça de suas promessas de trilhões de reais com isso e com aquilo.
A decadência da economia
O momento do país reflete três problemas até agora sem solução nem a devida discussão para desatar o enrosco. O mais antigo é a falta de crescimento econômico a um ritmo apropriado para criar empregos decentes. Não se deve confundir a retomada atual, conectada ao fim do isolamento social devido à pandemia, com crescimento legal.
No melhor cenário, a atividade econômica retornará ao nível em que se encontrava no início do ano, ou seja: estagnada ao redor de 1% a 1,5% de expansão anual. A renda per capita, por isso, recuou nesta década e só deverá voltar ao nível de 2014 em meados da próxima.
Sem a necessária prioridade a uma indústria competitiva em termos tecnológicos e com raio de ação soberano e ao investimento público complementar ao privado em infraestrutura, a decadência do país é a resultante. As sequelas fiscais e sociais são os sintomas.
O segundo problema resulta da estagnação: poucos empregos, mal compensados por programas de renda mínima, sobretudo pela falta de ações de educação profissional para a autonomia daqueles que Guedes chamou de invisíveis, embora visíveis a quem queira enxergar.
Opção é laxismo monetário
O terceiro problema está nas manchetes dos últimos dias. Não é bem a extensão do auxílio emergencial para atender ao anseio eleitoral de Bolsonaro, mas o tranco na demanda com o fim do tal Orçamento de Guerra em 31 de dezembro. O orçamento público federal sem os gastos emergenciais, segundo Fernando Montero, economista-chefe da Tullett Prebon, subtrairá R$ 500 bilhões da recuperação frágil da economia.
A via do escape fácil do aumento do gasto é vedada pela regra da despesa congelada ao realizado em 2016, corrigida pela inflação de 12 meses até junho de cada ano. Essa é a restrição que opõe Guedes a Bolsonaro. O presidente quer uma saída, mas teme um processo de impeachment (o teto de gasto é emenda à Constituição).
Guedes já propôs tosar gasto social, tipo deixar aposentarias sem correção por dois anos, negado por Bolsonaro. “Não vou dar ao pobre tirando do paupérrimo”, justificou, num raro momento de sabedoria.
A decisão moldará 2021. Se o teto for rompido, o BC provavelmente voltará a subir a Selic. Se for mantido, é possível que a reduza a 1,50%, como Montero ainda prevê que o BC fará. Em qualquer caso, a economia só contará com laxismo monetário. O gasto num governo sem planejamento e avesso a inovações é mais risco do que solução.
O abscesso do juro alto
O exame do DNA da dívida pública indica que retornar ao regime de juros acima da taxa de crescimento da economia é o não caminho. De dezembro de 2014 a junho de 2020, na regressão feita por Montero, a dívida bruta federal avançou de 56,3% do PIB para 86,5%.
Deste salto de 30,2 pontos de percentagem, 26,7 pontos vieram do diferencial de juro em relação ao PIB, mais o efeito do câmbio. A expansão do gasto primário puro foi de 16 pontos, compensados por 12,5 pp de venda de reservas e devolução pelos bancos estatais de repasses do Tesouro. Nos oito anos anteriores, 2007 a 2014, o combo de juro, ritmo do PIB e efeito cambial, diz Montero, agregou apenas 0,3 ponto percentual à relação da dívida sobre o PIB.
Hoje, o teto de gasto se selou ao investimento público, é a única contenção do nível de juro, este velho abscesso de nossa economia. Que fazer? Atender Bolsonaro ou meter a mão na massa da governança do Estado e deixar a economia fluir como propõe Rodrigo Maia?
Tem outro caminho, mas nem o governo nem seu time de formuladores tem aptidão para executá-lo. A sociedade, sobretudo o empresariado com boa dose de pragmatismo, vai ter de entrar nesta discussão.