POBREZA

Auxílio emergencial menor fará com que 13 milhões caiam para classes D e E

Redução da ajuda oficial e continuidade do ritmo lento da atividade econômica devem deslocar 13 milhões de pessoas para as classes D e E, além de aumentar o fosso de renda entre ricos e pobres no Brasil, preveem analistas

A pandemia da covid-19 está deixando um rastro de destruição e aumentando a desigualdade na economia global — e no Brasil não é diferente. A certeza entre especialistas ouvidos pelo Correio é de que, apesar de o auxílio emergencial de R$ 600 ter ajudado os mais vulneráveis a enfrentarem a turbulência, e tirado uma boa parte da população da zona de pobreza neste ano, o quadro vai piorar em 2021. Estimativas preliminares apontam que, pelo menos, uma dezena de milhões de pessoas deve voltar para as faixas mais baixas de renda no ano que vem, ampliando o fosso entre ricos e pobres no país.

Estudo recente liderado por Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), mostra que, até julho último, 13,1 milhões haviam saído do grupo das pessoas com renda per capita inferior a meio salário mínimo (R$ 552), em grande parte, devido a medidas como o auxílio de R$ 600. No ano que vem, contudo, o mesmo número de pessoas deve sofrer perda de renda e engrossar as faixas D e E, formadas por família com renda mensal até R$ 2,5 mil, que são a base da pirâmide social.

“Tudo vai depender do que o governo fizer em termos de ajuda à população de baixa renda. Como a mágica da melhora temporária na renda devido ao auxílio emergencial vai acabar, pelo menos 13 milhões de pessoas voltarão para as faixas mais pobres”, aposta Neri.

De acordo com o pesquisador, o auxílio evitou que boa parte da população passasse fome em meio à recessão profunda em que o país mergulhou com a covid-19. Mas reforça que o benefício começa a ser reduzido em outubro. “A medida vai diminuir o ganho de boa parte das pessoas que saíram da pobreza. Elas já devem voltar para o estrato mais baixo já ao longo deste ano”, afirma.

Mercado de trabalho

Levantamento feito por Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, identificou que 11 milhões de pessoas devem ser incorporadas às classes D e E entre 2019 e 2021. O inchaço das classes mais baixas de renda deverá ser mais perceptível no Nordeste. Contudo, o crescimento deve ser grande também no Sudeste, “por conta das perdas no setor de serviços, que tem peso relevante na região”.

“O agravante da piora na distribuição de renda que ocorrerá em 2021 é a deterioração do mercado de trabalho, com o aumento da base de assistência social hoje concentrada no Bolsa Família”, explica Vale. Ele lembra que as novas regras do mercado de trabalho podem permitir arranjos para essas classes durante a pandemia, mas não implicam melhora da renda. “Parece razoável trabalhar com piora adicional em 2021”, adianta.

Após a divulgação da queda histórica 9,7% do Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestre em relação ao anterior, Vale revisou de 5,3% para 4,8% a estimativa de retração da economia em 2020, mas manteve a projeção de crescimento de 2,2% em 2021, porque não vê um cenário de retomada acelerada, como o governo espera. A previsão de Vale é bem inferior à do Ministério da Economia, de 3,2%.

“O aumento da desigualdade, com mais pessoas perdendo renda e retornando para as camadas mais pobres, vai prejudicar a retomada em 2021, especialmente, via consumo das famílias. Desigualdade maior não ajuda o crescimento, e o padrão de consumo será em produtos básicos. Não haverá o salto de consumo que poderia ocorrer via crédito, porque a renda das pessoas não vai crescer”, explica o economista.

Sergio Vale lembra que, quando o Bolsa Família surgiu, houve forte ampliação do consumo no Nordeste, a região mais beneficiada pelo programa. “Pode ser que, a depender de quanto for o Renda Brasil, esse impacto aconteça de novo. Mas a base de comparação será ruim, já que vai ser bem menos que R$ 600 do atual auxílio emergencial”, afirma.

A economista Alessandra Ribeiro, sócia da Tendências Consultoria, observa que as classes D e E, já representam quase 60% da população. “Com as pessoas perdendo o emprego, pelo menos 3,8 milhões de domicílios devem ser adicionados às faixas mais pobres”, destaca.

Alessandra acrescenta que, após apresentar crescimento neste ano, devido ao auxílio do governo, no ano que vem, a massa de renda deverá encolher significativamente, mesmo que o Executivo consiga lançar o Renda Brasil, programa que deve substituir o Bolsa Família, com benefício mensal de R$ 300 para 17 milhões de famílias. Atualmente, o Bolsa atende 14 milhões de famílias. “Pelas nossas estimativas, a massa de rendimentos da população deverá cair 4,2%, após crescer 4,5% neste ano. É uma paulada na renda”, adianta.

Jefferson Nascimento, coordenador de pesquisa da Oxfam Brasil, nota que a desigualdade, que é medida pelo Índice de Gini, vinha caindo desde 2001, mas voltou a crescer a partir da recessão de 2015, apesar de apresentar pequena variação em 2019. “E, agora, possivelmente, tornará a aumentar”, diz.

Trava na retomada

A renda média familiar de todos os trabalhos no país, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é de R$ 2.308 mensais, enquanto 1% da população ganha 12 vezes mais, R$ 28.659. Famílias mais pobres e sem instrução têm rendimento infinitamente menor, de R$ 805 por mês. E os analistas são unânimes em admitir que esse quadro deve piorar no ano que vem.


Na última sexta-feira, o IBGE informou que 12,9 milhões de pessoas estavam desempregadas na segunda semana de agosto, o que elevou a taxa de desocupação para 13,6% — bem acima dos 10,5% da primeira semana de maio, quando a pandemia atingia o pico dos contágios e grande parte das pessoas não saía de casa para procurar emprego. Alessandra Ribeiro, da Tendências, prevê que o desemprego chegará a 15,7% em 2021, mesmo com o Produto Interno Bruto (PIB) crescendo 3%. “O mercado de trabalho não vai ser capaz de absorver todas as pessoas”, lamenta.


O economista Fernando Ribeiro, professor do Insper, reconhece que a piora na desigualdade será mais uma trava para o crescimento da economia. Para ele, é apenas “momentânea” a “calmaria institucional” que o governo tentou transmitir à sociedade ao encaminhar ao Congresso o projeto de reforma administrativa e a proposta orçamentária dentro do teto de gastos.

Velho problema

O principal motor do crescimento, o investimento, não deve reagir tão cedo, especialmente, do setor privado. “Há uma trava política que também atrapalha o processo de retomada, o risco fiscal é muito elevado e os investidores estão receosos, principalmente, quando olham para a piora dos dados ambientais, que é o que vai pesar nas decisões”, explica Ribeiro. “O aumento das faixas D e E é mais um desalento, e o país continua com o velho problema da desigualdade elevada, resultado da baixa escolaridade da população e da falta de políticas públicas eficientes”, emenda.
O economista Marcelo Neri, da FGV, reforça que esse quadro nada animador só confirma o fato de que o país está preso “na armadilha da renda média baixa”. “Quando olhamos para o PIB per capita, o país não está entre os piores, mas o problema é que a desigualdade regional é muito forte, e a pandemia vai agravar essa situação, com piora no mercado de trabalho e aumento da informalidade, que já é elevada e está associada aos menores rendimentos. Quando o auxílio emergencial sair de cena, o governo vai ter de enfrentar a realidade: o Brasil é um país pobre”, conclui o especialista da FGV. (RH)