Reforma administrativa

Debate apressado pode atrapalhar o combate à corrupção, diz Anafe

Presidente da Anafe, Marcelino Rodrigues demonstrou preocupação com a possibilidade de a reforma administrativa tramitar de forma acelerada, sem diálogo com os servidores, a partir desta quinta-feira (3/9)

O anúncio do presidente Jair Bolsonaro de que a reforma administrativa será enviada nesta quinta-feira (3/9) ao Congresso Nacional deixou a equipe econômica e o mercado financeiro em euforia. Contudo, causou preocupação ao funcionalismo público.

A Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe) argumenta que esse é um tema muito amplo e delicado para ser tratado de forma açodada ainda neste ano. E acredita que uma reforma mal feita pode trazer prejuízos para a qualidade do serviço público, atrapalhando o atendimento ao cidadão e o combate à corrupção.

Por isso, pede que haja mais diálogo com os servidores e transparência na tramitação da reforma administrativa. O presidente da Anafe, Marcelino Rodrigues, explicou essas preocupações ao Correio. Veja:

Após quase um ano de negociações, o presidente Bolsonaro decidiu, junto ao ministro da Economia, Paulo Guedes, apresentar a proposta de reforma administrativa. E parlamentares dizem que é possível iniciar esse debate ainda neste ano. A Anafe percebe essa disposição de tratar do assunto no restante do governo?

A gente vê que o próprio governo está dividido. Uma ala tenta antecipar esse debate e criar um ambiente de pressão em torno dos servidores públicos, usando dados até inadequados. Mas tem outra parte — à qual, pelo que parece, o presidente estava filiado — que entende que não é o momento de tratar da reforma administrativa.

Quem defende a antecipação defende a reforma apenas do ponto de vista fiscal, quer cortar, reduzir custo no momento em que o Brasil mais precisa do estado. Nós estamos em um momento de pandemia, uma situação que demanda do estado uma atuação mais forte, seja na área de saúde e segurança pública, quanto na fiscalização de programas como o auxílio emergencial. Há essa divisão no governo. Mas a ala que quer antecipar o debate, a equipe econômica, quer fazer sinalizações para o mercado.

Na avaliação da Anafe, o momento é adequado para tratar desse assunto?

Uma eventual reforma tem que vir para aperfeiçoar o serviço público, visando o futuro. O debate não pode vir apenas no sentido de cortar, reduzir gasto, ainda mais agora, num momento em que todos estão passando dificuldade. Então, deveria ficar para depois. Fazer esse debate agora seria atropelar o momento que estamos passando. As votações estão sendo feitas de forma virtual. Pode não haver um debate claro sobre o tema. E até agora os servidores públicos não foram ouvidos. Como fazer uma reforma sem ouvir os principais atores? Precisa ter tempo para chegar a uma proposta razoável. Ninguém é contra o aperfeiçoamento do estado, a racionalização de carreiras. A própria pandemia trouxe algumas coisas que vieram para ficar, como o home office. Mas tudo isso precisa de tempo. Como fazer isso com as eleições marcadas para novembro?

Qual o risco de discutir uma reforma como essa de forma acelerada?

Isso indo para o Congresso da forma como está hoje, de forma remota, sem a possibilidade de os servidores subsidiarem os parlamentares da forma adequada… É uma situação complicada. Tem o risco de acabar prejudicando os serviços públicos. Temos serviços de excelência, na Polícia Federal e na advocacia pública, por exemplo. E a maioria das carreiras tem aumentado a carga de trabalho na pandemia. Uma reforma administrativa feita de forma açodada, sem diálogo, pode enfraquecer esses órgãos de fiscalização, investigação e controle de legalidade. A PF, por exemplo… A Lava-Jato já está em xeque. Se vem uma proposta que reduz a prerrogativa ou faz um corte nos policiais, tem um impacto, gera um ambiente complicado. Pode até atrapalhar o combate à corrupção. A quem isso interessa?

Bolsonaro disse que a reforma não vai atingir os atuais servidores, diferente do que Guedes defendia anteriormente. Essa mudança pode reduzir esses impactos?

Há uma pressão por parte do Guedes para o envio da reforma. Colocam isso como algo que vai trazer economia, melhorar o fiscal. Mas Bolsonaro determinou que seja apenas para servidores futuros. Só que não há nenhuma perspectiva de concurso público no futuro. Então, fica uma ideia contraditória Como a reforma vai ter uma solução fiscal se não vai atingir os antigos servidores? É uma contradição. Ficamos um pouco preocupados, porque sabemos que a ideia da equipe econômica e de alguns parlamentares, desde cedo, era atingir a todos.

O fato de o anúncio ter sido feito de uma forma incomum nesse governo, com o presidente rodeado por parlamentares do Centrão, preocupa?

O governo entrou em uma nova fase de buscar alinhamento ao parlamento. É um prenúncio de que o debate deve ter força com esse apoio. Mas também há muitos parlamentares em defesa do serviço público. Vai ser um contraponto importante. A expectativa é que consigamos estabelecer o diálogo que não foi possível junto ao governo.

O senhor se queixou da falta de diálogo. Os servidores não foram ouvidos na elaboração da proposta de reforma administrativa do governo?

A gente não sabe sequer qual é a proposta de reforma administrativa. Ninguém viu até hoje. Não se tem, até o momento, pessoas que conheçam o serviço público participando desse processo. Muitos dos integrantes do governo, alguns inclusive pediram para sair, são pessoas que vieram da iniciativa privada, não têm experiência no serviço público e não têm condições de fazer uma análise global do serviço público num período tão curto. É preciso ter uma leitura de todo o serviço público, para não ter que reformar de novo daqui 3, 4, 5 anos. Então, o certo é que tivéssemos participação na formulação da proposta e também na tramitação no Congresso Nacional. Mas, no momento, não há participação no Executivo e também há o risco de ter uma participação prejudicada junto aos parlamentares já que o Congresso está trabalhando de forma remota.

O Ministério da Economia diz que as despesas com funcionalismo são uma das que mais pressionam o orçamento, tanto que o governo congelou o salário dos servidores até o próximo ano. Como seria possível conciliar os pagamentos do funcionalismo com a situação fiscal do Brasil?

Guedes quando fala isso mente. Ele se utiliza de falácias, fake news para justificar o encaminhamento da reforma administrativa. Não tivemos reajuste acima da inflação nos últimos anos. O último reajuste foi em 2014 e foi parcelado; quando acabou, a inflação já tinha levado tudo. Quando ele fala que existe ajuste automático, ele mente, porque não temos sequer a correção pela inflação. Além disso, se fizer uma análise sobre o custo de pessoal da União, está muito longe do limite fiscal da LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal]. O que tem no serviço público, na verdade, é a falta de reposição de pessoal, por falta de concurso. Não vejo o cenário que Guedes desenha. Guedes diz isso porque não quer enfrentar o que deve ser enfrentado de forma urgente, como a reforma tributária. Tem que enfrentar primeiro os subsídios que são dados para algumas categorias de empresas, o imposto sobre lucros e dividendos. O próprio imposto sobre grandes fortunas poderia trazer uma folga orçamentária grande para a União. Existem espaços e situações que podem ser enfrentadas, mas Guedes não quer enfrentar os assuntos que têm repercussão na ala financeira, por isso vai para a ala mais fraca, dos servidores.

Muito se fala também sobre os supersalários e os benefícios de alguns servidores.

Temos regras de que todos devem receber até o teto constitucional. Agora, há algumas situações pontuais em alguns estados. É algo que deve ser aperfeiçoado. Existem projetos nesse sentido, para que o teto constitucional seja aplicado para todos. Mas é algo que tem um impacto diminuto nas contas. As pessoas misturam esse debate com o objetivo de confundir.

Em outro contexto, a Anafe concordaria em debater uma reforma administrativa?

É preciso a reforma, mas não sob o ponto de vista fiscal como está sendo colocado. O importante é ter uma reforma de aperfeiçoamento do serviço público, para o futuro, com a participação dos servidores. Temos situações como o governo digital, por exemplo. É preciso discutir as novas tecnologias, o home office. Isso pode reduzir o retrabalho, a necessidade de tantos prédios. Também podemos ter uma racionalização das carreiras, uma diminuição do número de carreiras, para trazer uma mobilidade maior para os servidores e uma condição melhor de gerir a máquina pública. Além de incentivar formas de incentivo e mérito aos servidores. É possível ter um serviço público mais enxuto, que continue eficiente, sem ser do ponto de vista de corte, de redução. Não somos contrários a nada que vem nesse sentido de aperfeiçoar.

A Anafe apoia as proposta de avaliação do desempenho do servidor?

Ninguém pode ser contra a avaliação de desempenho em nenhuma situação.Inclusive existe a previsão da avaliação na Constituição, só não é regulamentada. A questão não é essa, mas a forma como vai ser tratada. Hoje, isso vem muito no sentido de punir, de querer colocar para fora. Este não pode ser o viés da avaliação. É preciso ter uma avaliação multifocal, que avalie vários aspectos e não seja feita apenas pelo superior hierárquico.

Como avalia as discussões sobre o possível fim da estabilidade?

A estabilidade é algo essencial, sobretudo para carreiras típicas de estado, como a advocacia pública do estado, o juiz, o auditor fiscal, a Advocacia-Geral da União. Nós fazemos avaliações milionárias, por vezes bilionárias. Precisamos de um anteparo para ter autonomia nessa avaliação em qualquer governo. Se formos contra o gestor de plantão, podemos ser objeto de retaliação se não tivermos uma estabilidade mínima. Então, a estabilidade não é em favor apenas do servidor, mas da sociedade como um todo. O debate deve ser como aperfeiçoar isso.

O que a Anafe vai fazer para subsidiar essa debate?

Temos tratado do tema através do Fonacate [Fórum das Carreiras de Estado]. Estamos fazendo cadernos sobre os diversos temas da reforma administrativa e mandando para os parlamentares. Também estamos discutindo com a Frente Parlamentar Mista da Reforma para mostrar nossos posicionamentos. Esperamos que o presidente e a maioria dos parlamentares tenham bom senso de ter essa leitura de que não é o momento adequado para tratar desse assunto.