O presidente Jair Bolsonaro disse, em seu discurso de abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), na terça-feira, que “no primeiro semestre de 2020”, apesar da pandemia, houve crescimento no ingresso de investimento no país” e que “a confiança está aumentando”. No entanto, a nota com estatísticas do setor externo do Banco Central (BC), divulgada nesta quarta-feira (23/9), mostra o contrário e indica uma debandada sem precedentes do capital estrangeiro do país. E sinaliza que o quadro ainda pode piorar.
De acordo com os dados do BC, US$ 15,2 bilhões deixaram o país neste ano. É o maior valor para fechamento do fluxo cambial no acumulado de janeiro a agosto desde 1982. A nota da autoridade monetária ainda mostra queda expressiva e contínua no Investimento Direto no País (IDP), que é o capital produtivo que faz a roda da economia girar mais rápido. Apenas no mês passado, esse indicador de entrada do investimento estrangeiro direto desabou 85,3% na comparação com mesmo mês de 2019, passando de US$ 9,5 bilhões para US$ 1,4 bilhão, o menor patamar para o período desde 2006.
“O que estamos vivendo, hoje, é uma situação inédita de magnitude em cada um desses componentes no país, refletindo o nível de incertezas da recessão global”, reconheceu o chefe do Departamento de Estatísticas do BC, Fernando Rocha, durante a apresentação dos dados do setor externo, que apontaram melhora no balanço de pagamentos. O saldo de transações correntes do país com resto do mundo ficou positivo em US$ 3,7 bilhões em agosto. No acumulado do ano, o deficit vem encolhendo “em grande parte devido à melhora no saldo comercial, em função da forte queda das importações”. Conforme disse, a expectativa para a entrada de investimento direto em setembro é de US$ 2 bilhões, patamar ainda inferior dos US$ 6 bilhões no pré-pandemia e, portanto, a retomada do IDP ainda deve demorar.
Mas os dados ruins –– que confrontam as declarações de Bolsonaro e confirmam os alertas de fundos de investimentos, grandes bancos e ex-ministros — não param por aí. No acumulado de 12 meses até o mês passado, o BC registrou a entrada de US$ 54,5 bilhões, o menor volume desde agosto de 2010 e equivalente a 3,51% do Produto Interno Bruto (PIB). E, para setembro, o banco prevê queda nesse indicador para algo em torno de US$ 50 bilhões, bem abaixo da previsão de US$ 55 bilhões para o ano. Resta saber se o BC vai revisar essa expectativa novamente para baixo, hoje, durante a apresentação do Relatório Trimestral de Inflação (RTI).
Estoque encolhendo
E não é apenas o fluxo de entrada de investimento que cai. O estoque investimento estrangeiro direto também encolhe. Em agosto, estava em US$ 659,8 bilhões, recuo de 19,5% em relação aos US$ 819,5 bilhões computados no fim de 2019. No acumulado do ano, a saída de investimentos estrangeiros em carteira somou US$ 28,3 bilhões, outro recorde segundo dados do BC. Desse montante, US$ 19,5 bilhões foram aplicações em ações e US$ 8,8 bilhões, em títulos da dívida.
Na avaliação de analistas ouvidos pelo Correio, esses dados refletem que a desconfiança de investidores no país está aumentando — e, portanto, a debandada de capital deve continuar crescente, especialmente por causa da questão ambiental, devido às queimadas no Amazonas e no Pantanal. Isso afugenta o capital externo, assim como as incertezas em relação ao controle das contas públicas: o estouro do teto de gastos é visto como uma realidade, em 2021, uma vez que o governo não sinaliza claramente que vai conseguir controlar as despesas da dívida pública bruta, já perto de 100% do PIB.
“A queda do IDP vem ocorrendo desde abril, por conta da crise provocada pela pandemia, mas é provável que deverá permanecer porque o cenário à frente é de uma economia piorando, com um quadro fiscal ruim, com juros de longo prazo subindo. E toda a agravante da questão ambiental, que é essencial para o investidor estrangeiro”, alertou o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale.
O ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente Rubens Ricupero destacou que esse fenômeno reflete, sobretudo, a perda de confiança devido ao temor de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, perca o controle da situação fiscal diante do projeto de reeleição de Bolsonaro. “Ninguém mais acredita que o ministro da Economia tenha condições para evitar a tendência de subordinar tudo à reeleição: dinheiro para obras, novo auxílio emergencial sem tocar nos programas sociais existentes. Sinais claros da alarmante queda de confiança é o alargamento do fosso entre os juros para rolagem da dívida”, alertou. Ele lembra, ainda, o enfraquecimento do real ante o dólar em proporção muito maior do que nos outros países emergentes também como resultado dessa desconfiança.
“Creio que a questão ambiental afeta, em especial, os investimentos futuros, que se sentem desencorajados. Em relação ao dinheiro que sai do financiamento da dívida ou da Bolsa, provavelmente o medo de que o país mergulhe na crise pesa mais do que outras considerações. Isso torna a situação complicada, porque o governo perdeu credibilidade fiscal e esse elemento é difícil de consertar”, explicou.
A economista Juliana Inhasz, professora do Insper, também reconheceu que aumento da desconfiança e a perda de atratividade do Brasil são evidentes nos dados do BC. “Mostra um dado preocupante porque são os grandes investidores que aplicam em economias emergentes. E eles estão percebendo que o Brasil não é um bom lugar para investir, com riscos crescentes e o teto de gastos caindo na cabeça”, lamentou.
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Mercado pede cautela
Cautela é a palavra do momento no mercado financeiro. Isso porque a apreensão entre investidores de todo o mundo, com a possibilidade de um novo fechamento da economia na Europa, tem dado o tom nas Bolsas estrangeiras há, pelo menos, uma semana. Além disso, a falta de estímulos monetários à vista também tem prejudicado o humor dos operadores. Nesta semana, alguns dos principais índices globais registram quedas expressivas dia após dia. É o caso da B3: o Ibovespa teve um dia de realização de lucros com tombo de 1,6%, aos 95,7 mil pontos –– pior patamar desde o dia 30 de junho.
A queda não foi maior graças ao anúncio da fusão entre as locadoras de veículos Localiza e Unidas, que fez as ações de ambas subirem 13,9% e 17,2%, respectivamente. Além dos agravantes do cenário externo, a Bolsa brasileira teve, também, outros motivos para mais um dia de queda, segundo Renan Silva, economista da Bluemetrix Ativos. Ele destaca, por exemplo, os dados de desemprego no país, divulgados ontem pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IGBE). A taxa de desocupação aumentou 0,5% em agosto, na comparação com o mês anterior.
“Batemos 13,6%, o que realmente aumenta a incerteza quanto à velocidade da recuperação da economia, uma vez que o consumo das famílias representa mais de 60% do PIB. Com desemprego alto, significa menor renda dos consumidores e, também, um endividamento maior das famílias. Isso acaba afetando as expectativas sobre o valor das empresas na Bolsa”, detalha.
Contas preocupam
Além disso, as contas públicas preocupam. De acordo com dados do Ministério da Economia, o deficit no fim do ano deve ultrapassar os R$ 860 bilhões, número superior aos R$ 787,5 bilhões previstos em julho. O aumento deve-se à extensão do auxílio emergencial. Na avaliação de Renan Silva, apesar de o governo ter injetado dinheiro no consumo com o benefício, o momento atual é de recessão — algo que já era esperado, só não se sabia exatamente quando.
O economista também acredita que as polêmicas falas do presidente Jair Bolsonaro, na terça-feira, na Assembleia Geral das Nações Unidas, agravam a “aversão ao Brasil”, o que significa que o país se torna menos atrativo para investimentos. A saída de capital estrangeiro, inclusive, tem pressionado o câmbio e levou o dólar ao valor mais alto desde agosto: a moeda americana disparou 2,18% e foi a R$ 5,58.
Também no cenário doméstico, há discussões sobre a possível criação de um novo imposto nos moldes da antiga CPMF e a possibilidade do rompimento no teto de gastos.
*Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi