Parte do dinheiro destinado ao combate a pandemia continua parado

Ministérios que não estão ligados à área econômica e nem à sanitária receberam dinheiro e ainda não o usaram

Os gastos do governo no orçamento de guerra contra a pandemia da covid-19 têm chamado a atenção e não é pelo volume das despesas autorizadas por medidas provisórias, de cerca de R$ 512 bilhões, até o momento. Os dados mais detalhados mostram haver ministérios que não estão diretamente ligados à crise sanitária ou à econômica que receberam recursos, mas estão com a maior parte do dinheiro parada.

Um deles é o Ministério do Turismo, que recebeu dotação de R$ 8 bilhões, mais de quatro vezes o orçamento anual da pasta, e só registrou o pagamento de R$ 787 milhões, ou seja, menos de 10%. Procurada, a pasta chefiada por Marcelo Álvaro Antônio informou que, dos R$ 8 bilhões previstos na dotação, R$ 5 bilhões são créditos extraordinários destinados para o Financiamento da Infraestrutura Turística Nacional, sob a gestão do Fundo Geral de Turismo (Fungetur), conforme a previsão da Medida Provisória (MP) 563/2020. Os outros R$ 3 bilhões, “são referentes a recursos da Lei Aldir Blanc (Lei 14.017/2020), que define ações emergenciais destinadas ao setor cultural e repasses a estados e municípios”. “Os valores mencionados referem-se aos planos emergenciais para socorrer os setores de Turismo e Cultura neste momento de crise, em razão da pandemia global de coronavírus”, afirmou a nota do órgão, sem detalhar que projetos serão beneficiados ou mesmo um cronograma com a previsão dos desembolsos.


O secretário da Contas Abertas, Gil Castello Branco, contou que ficou intrigado sobre os recursos para o Turismo e para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que teve autorização para gastar R$ 210,7 milhões, “em medidas para enfrentamento da saúde” e apenas R$ 42,1 milhões foram pagos até a última sexta-feira. “Não deixa de ser estranho, porque seria algo mais coerente que esses recursos fossem para o Ministério da Saúde. Está parecendo que todas as pastas estão tentando arrumar algum motivo para ter orçamento de guerra”, comentou. Ele lembrou que, em 2019, a previsão orçamentária do MTur, incluindo Fungetur, somou R$ 1,2 bilhão.


Questionado sobre os créditos extraordinários abertos em favor da pasta, o Ministério da Mulher detalhou que os recursos são oriundos da MP 942/2020, no valor de R$ 45 milhões, e da MP 991/2020, de R$ 160 milhões, e ainda fez um “remanejamento próprio”, de R$ 5,7 milhões, para ações contra a pandemia. Segundo o órgão, os recursos referem-se, por exemplo, a repasses e transferências “para aquisição e distribuição de cestas básicas para populações indígenas, quilombolas e povos tradicionais”. O MMFDH reconheceu a complexidade de se atingir, “de forma transparente e efetiva, as milhares de Instituições de Longa Permanência de Idosos que necessitam desses recursos” e, por conta disso, disse que está “finalizando uma parceria com uma entidade com credibilidade e expertise” para execução dos recursos. Um dos motivos para a não liberação dos R$ 160 milhões previstos para entidades sem fins lucrativos está relacionado com a demora para o Congresso apreciar os vetos da Lei 14.018/20, que dispõe sobre a prestação de auxílio financeiro pela União às Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) durante a pandemia, o que “provoca insegurança jurídica na execução”.


Castello Branco acredita que o governo deveria monitorar melhor os recursos do orçamento de guerra repassados aos ministérios. “É preciso ficar atento aos valores que aparecem neste portal, porque eles mudam diariamente e dão a sensação de que a porteira está aberta e a boiada está passando”, alertou.
Procurado, o Ministério da Economia não comentou o assunto nem a demora nos repasses. “A Secretaria de Orçamento Federal informa que todos os órgãos estão com suas dotações orçamentárias integralmente disponíveis para empenho, isto é, não há contingenciamento. Assim, os empenhos e as execuções das dotações dependem apenas da operacionalização de cada ministério”, informou a pasta, em nota.

Execução

Conforme os dados do Tesouro Nacional, o governo pagou R$ 313,4 bilhões dos R$ 512 bilhões dos gastos previstos no orçamento de guerra até sexta-feira, ou seja, 61,2%. A pasta com maior volume de dotação prevista é o Ministério da Cidadania, responsável pela gestão do auxílio emergencial de R$ 600. Registrou o pagamento de R$ 182,8 bilhões dos R$ 254,4 bilhões estimados para os cinco meses do benefício. Já o Ministério da Infraestrutura teve o menor volume de liberação, de R$ 400 mil.

Ao que tudo indica, haverá sobras do orçamento de guerra porque os ministérios, estados e municípios não devem conseguir gastar todos os recursos liberados, na avaliação de analistas e parlamentares ouvidos pelo Correio. Contudo, o governo não poderá utilizar esses recursos em outras áreas, como investimento em infraestrutura ou no Renda Brasil, como vem sendo cogitado. O representante do Ministério Público no Tribunal de Contas da União (TCU), Júlio Marcelo de Oliveira, lembrou que os recursos do orçamento de guerra só podem ser usados no orçamento de guerra. “Não podem ser usados em outras despesas, não. A autorização do Congresso foi expressa no sentido de que os créditos extraordinários da pandemia só poderiam ser usados para despesas da pandemia”, frisou.

De olho na tentativa de manipulação do orçamento de guerra para flexibilizar o teto de gastos, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), inclusive, tenta articular a prioridade para votação em plenário do PL 4.078/2020, de autoria dela, para evitar que os recursos não utilizados no orçamento de guerra voltem para os cofres públicos da União para ampliar o teto de gastos em 2021. A parlamentar é a favor de que o dinheiro seja aplicado em ações de saúde.

A proposta prorroga os prazos estipulados de todas as leis federais, até 31 de dezembro de 2021, para que os entes federativos gastem os recursos recebidos em ações de saúde e de assistência social. Além disso, veda a antecipação da devolução das verbas em questão à União, sob quaisquer motivos. “Com isso, evita-se a devolução de recursos ao governo federal, que deveriam, em tese, retornar ao estado, ao Distrito Federal ou ao município no recrudescimento do enfrentamento da covid-19. E esses recursos poderão ser utilizados para a compra imediata de vacinas ou de medicamentos eficazes contra a doença, caso disponíveis em um futuro próximo”, justificou Tebet na proposta.