Brasil S/A

Convite à reflexão

A cacofonia de versões sobre os rumos da economia, potencializadas pela dessintonia entre as necessidades do país e a incapacidade do governo em atendê-las, exacerba o sentimento de que estamos em meio a um passeio ao acaso desde muito antes da calamidade da pandemia.

Com 100 mil mortes em cinco meses causadas pelo vírus que não era “gripezinha”, como quis mitigar o presidente Jair Bolsonaro e, sim, uma tragédia que revelou a miséria da governança pública e a baixa estima nacional, a questão de fundo vai muito além de uma vacina salvadora para “tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”, conforme a sua última manifestação de indiferença.

Esse descaminho aflorou mais uma vez com as pressões de setores do governo, em conluio com políticos e grupos empresariais acostumados a ordenhar o Tesouro, para explodir o dispositivo inserido em 2016 na Constituição pelo Congresso, limitando a expansão anual do gasto público federal à inflação de 12 meses. O mecanismo foi a forma de conter o crescimento automático e desordenado da despesa fiscal de modo a forçar a discussão sobre a governança do Estado brasileiro.

Como medida de gestão da macroeconomia, foi ruim, especialmente ao enfiar o investimento público numa camisa de força por 20 anos, com revisão em 2026. Grupos contrários à atuação estatal na organização social a interpretaram literalmente, fazendo do “teto do gasto” uma ordem para a liberalização absoluta da economia, não para induzir a discussão sobre a gestão e as prioridades do setor público.

Esse é o contexto dos que vêm forçando desde o começo do segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff o chamado “ajuste fiscal” — na prática, o corte linear de despesas. É conveniente que assim seja para quem se arroga detentor de direitos e regalias, como a elite da burocracia e os grupos empresariais favorecidos com desonerações de impostos e tarifas protecionistas sem avaliação de seu custo e benefício.

Ao confundir a sociedade sobre as razões de o deficit público ter se tornado recorrente desde 2014, os lobbies fiscalistas desidratam as rubricas dos fundos que suprem os programas e políticas em favor dos mais fracos para salvar suas prebendas graças ao juízo validado pelo STF do direito adquirido. Essa é a discussão que urge fazer.

Estado fraco é besteirol

A discussão relevante é a da governança do Estado, sem a qual não se terá jamais a subordinação dos interesses de seus gestores e dos políticos acumpliciados, o que inclui o presidente da República, às prioridades da sociedade, ajustadas às tendências tecnológicas e da geopolítica. Não há país nenhum bem-sucedido com o Estado fraco, o que não implica Estado grande, mas governança forte e controlada.

Esse é o conflito que se põe no momento. A ala dita neoliberal do governo conflita com os ditames de proteção social da Constituição ao pretender o ajuste fiscal sem propor outra governança, enquanto a maioria do Congresso, que se move pelos valores social-liberais, reivindica reformas como a administrativa e a tributária.

A votação avassaladora de 499 votos entre 513 deputados do fundo da educação básica, o Fundeb, mostrou que tal parte da Constituição é inegociável. Tanto que se começa a estudar a conversão do auxílio emergencial provisório numa renda básica permanente. Antes há muito empecilho a reformar, menos pela eventual trajetória de risco que o gasto público possa assumir, mas pela necessidade crucial da volta do crescimento econômico. Ele não virá pela confiança do mercado.

Como tirar o bode da sala

Em algum tempo, e quanto antes melhor, o teto de gasto terá de ser removido. Mas, antes, o RH do funcionalismo terá de ser modernizado, com restrição da garantia de emprego a carreiras de Estado, fim dos aumentos automáticos de salários e gratificações, criação de regras de desempenho, aproximando-as das aplicadas ao resto da sociedade.

Será preciso, também, outro regime de concessão de serviços e obras à iniciativa privada. Hoje, agências de controle e os ministérios contratantes carecem de quadros aptos e dissociados de interesses políticos. Foi mais inépcia dos gestores que um desejo atávico de delinquir que levou aos crimes apurados pela Lava-Jato.

E não será o senso do lavajatismo, criminalizando a política, que enfrentará a corrupção no Estado. É com tecnologia e a governança renovada, que inclui reaver as hierarquias das cadeias de comando do Estado, que se combate a corrupção, além de muita transparência.

Outra coalizão à vista

No fim, o que se assiste, no país — isso quando deixamos de lado as folias de Bolsonaro e seus cruzados da “guerra cultural” — é a falta de um sistema de planejamento adaptado a um mundo em que mudanças e ameaças são contínuas. Nada a ver com o planejamento criado no pós-guerra para regular economias de comando e controle. Isso acabou.

Também é preciso ir além da estratificação entre os modelos fiscal e monetário apartados. O teto de gasto não tem de ser mantido para algemar o ativismo fiscal, é para levar o Congresso a rever, como recomenda o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o orçamento refém de lobbies públicos e privados. Mas, aí, o Banco Central elevará os juros, dirão os tementes da seita fiscalista. Não necessariamente.

A taxa de juro é a que deseja o BC, como o Fed ensina, e o risco de inflação pode ser controlado com imposto para reduzir pressões de demanda (por isso flexibilidade tributária é essencial), além de indicar oportunidades de investimento para contemplar a oferta.

É outra política econômica. E é outra coalizão política, esta mais sintonizada com a maioria moderada do país e os anseios sociais.

O que dizem as pesquisas

E o que se espera para entrar em campo um cenário mais animador? Espera que apareça quem melhor incorpore este caminho, já que plano e interessados não faltam. Até lá Bolsonaro apontará nas pesquisas.

Elas falam mais sobre a insatisfação com os eventuais desafiantes cogitados do que sobre suas qualidades. Os incumbentes sempre aparecem bem em pesquisas distantes da eleição. Bolsonaro deve saber. Ou não desejaria um Bolsa Família mais parrudo nem elevar o teto do gasto.