De repente, as pessoas começaram a ver o mundo de trás das janelas. O comércio baixou as portas, houve redução da atividade industrial, e os veículos passaram a acumular pó nas garagens. Estas têm sido cenas comuns deste 2020 na Terra. Desde o começo do ano, cidades inteiras pararam, em algum momento, para conter a circulação do novo coronavírus. E, enquanto o mundo acumula mais de 728 mil mortes e 19,7 milhões de contaminados pela covid-19, ficam, também, lições sobre o impacto da ação humana no meio ambiente. Uma das mais perceptíveis até o momento é na qualidade do ar, como mostra o Correio no especial Sustentabilidade: o caminho do transporte pós-pandemia.
A comparação de imagens de satélite feitas pela Agência Espacial Europeia antes e depois da pandemia evidencia diferenças na qualidade do ar em sete capitais brasileiras. O Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA/SC) percebeu melhoras em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Goiânia, Curitiba, Salvador e Belo Horizonte durante a quarentena.
De acordo com o gerente de Gestão de Informações Ambientais e Geoprocessamento do IMA/SC, Diego Hemkemeier Silva, as imagens dos satélites de 20 de março a 8 de abril deste ano, comparadas com igual período do ano passado, constatam a melhora. “Essas medições costumam variar, mas, desta vez, houve redução da poluição, em diferentes locais, no mesmo período: a quarentena”, diz. A análise, explica, foi qualitativa e não quantitativa. Por isso, ainda não é possível determinar o percentual de melhora. Em breve, pesquisadores do instituto publicarão artigo com esses dados.
Para o especialista, os resultados da análise não devem embasar medidas de distanciamento social ou redução da atividade industrial, mas deixam claro que os governos precisam colocar em prática políticas públicas que busquem o desenvolvimento sustentável, assim como a população deve se conscientizar de que é preciso mudar hábitos para se viver melhor. “Os derivados de petróleo são poluentes com grande impacto no meio ambiente, principalmente, na qualidade do ar. Por isso, ações de incentivo aos veículos elétricos, ampliação das ciclovias e monitoramento ambiental são medidas eficazes”, comenta.
A gerente da Divisão de Qualidade do Ar da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), Maria Lucia Gonçalves Guardani, está convencida de que o número reduzido de veículos nas ruas resultou em queda da presença de monóxido de carbono (CO).
Na avaliação dela, o desafio com a retomada das atividades e o período pós-pandemia é criar condições para reduzir a frota circulante. “O ideal é investir no transporte coletivo de qualidade, na melhoria do combustível, além da educação ambiental. Isso tudo depende de ações governamentais, seja na esfera municipal, seja nas estadual ou federal.”
Desafio
As consequências da mudança repentina no padrão de consumo, na atividade econômica e nos deslocamentos diários evidenciaram o quanto a presença humana afeta o meio ambiente. A grande questão é se o retrato desse momento tão singular vai inspirar governos, corporações e a sociedade civil a promover mudanças estruturais na cadeia produtiva e no cotidiano. “A pandemia reforça a necessidade de priorizar investimentos mais sustentáveis, a fim de reduzir os impactos das condições, mudanças e emergências climáticas. E a população também percebeu que é possível ter um padrão de vida mais sustentável”, frisa o especialista em mudanças climáticas Saulo Rodrigues Filho, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB).
Para o especialista em meio ambiente Charles Dayer, apesar do período complicado gerado pela pandemia do novo coronavírus e das vidas perdidas pela doença, houve resultados positivos durante o isolamento social. “Quando você vai defender uma causa ambiental, é difícil mostrar o impacto da ausência das ações humanas, porém, durante a quarentena, isso se tornou possível”, ressalta.
De acordo com o estudioso, a pandemia, do ponto de vista ambiental, gerou a simulação de um período sem a ação do ser humano no mundo, ou causando o mínimo de impacto. “Na China, Itália e em São Paulo, por exemplo, você teve redução de emissão de gases”, comenta.
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Redução de fluxo no DF
No Distrito Federal, a melhora na qualidade do ar revelada pelo IMA/SC está também atrelada à baixa circulação de veículos, já que as indústrias receberam permissão para continuar em funcionamento durante a pandemia. Antes do período de isolamento social na capital, havia 1,3 milhão de acessos ao transporte público por semana e em dias úteis. Em 29 de março, duas semanas após o Executivo local publicar o primeiro decreto suspendendo as atividades na capital, o número cai para 300 mil por semana e em dias úteis.
A circulação de veículos em geral também caiu, mas, após a flexibilização das medidas de contenção da pandemia, começa a voltar a patamares anteriores. Em março, o fluxo era de mais de 4 milhões de veículos. Após o fechamento do comércio, no mesmo mês, esse número caiu pela metade. No fim de junho, já alcançava 3 milhões.
A média de acesso ao transporte público, por sua vez, continua abaixo da registrada no início da quarentena. Levantamento da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan-DF) mostra que, em 26 de julho, o transporte público da capital registrou menos da metade de acessos do que no período anterior ao da pandemia.
Adriana Modesto, doutora em transportes pela UnB, explica que as pessoas estavam deixando de usar o transporte público mesmo antes. “A qualidade do serviço coletivo é frágil em relação à regularidade de linhas, ao cumprimento de horários e até às condições das paradas. Isso faz com que as pessoas invistam em carros e em motocicletas. Agora, temos um acréscimo, que é a condição sanitária”, alerta.
A questão influencia até mesmo a escolha do local de moradia. Para a autônoma Nancy Viana, 36 anos, sempre foi assim. Moradora do Recanto das Emas, ela trabalha a 25km de casa, vendendo pano de chão e sacos de lixo em um semáforo entre o Cruzeiro e o Setor de Indústria e Abastecimento (SIA). Mesmo tendo alugado uma casa perto do terminal, ela teme assaltos no trajeto, leva mais de uma hora para chegar ao ponto de vendas e encara coletivos cheios. “Demoro uma hora e meia dentro do ônibus. Como saio um pouco mais tarde de casa, dá para vir sentada, dormindo. Na volta, é em pé mesmo”, completa.
O secretário de Transporte e Mobilidade do DF, Valter Casimiro Silveira, destaca que há um projeto em andamento para reduzir o número de veículos nas ruas, além de iniciativas com o objetivo de melhorar o acesso ao transporte público na capital. O Zona Verde, um pacote de investimento em mobilidade na cidade, visa medidas como a implementação de estacionamento rotativo na área central da capital, ampliação da capacidade do metrô, aumento da frota dos ônibus e instalação do VLT na W3 Sul e Norte. “Também vamos expandir os corredores exclusivos para ônibus. Isso tudo favorece o uso do transporte coletivo em detrimento do individual”, frisa.
Queima de combustíveis
O dióxido de nitrogênio (NO2) é um poluente produzido pela queima de combustíveis fósseis, como petróleo e biomassa. Ele surge, por exemplo, na combustão de motores de carros ou em fornos industriais. Por isso, a redução da circulação de veículos impacta na qualidade do ar. A exposição ao NO2 pode provocar danos à saúde, principalmente para pessoas com doenças como asma e bronquite. Além de ser irritante para os pulmões, ele é capaz de reduzir a resistência a infecções respiratórias.
Para saber mais
Impactos pelo mundo
Os avanços ambientais foram percebidos em diversos locais do mundo. Na China, segundo fotos divulgadas pela Agência Espacial dos Estados Unidos (Nasa), a mancha de poluição na região diminuiu entre 10 e 25 de fevereiro, período de quarentena em que ocorreu menor circulação de veículos e interrupção da atividade industrial. O mesmo fenômeno foi observado em cidades europeias como Bruxelas, Paris, Madri, Milão e Frankfurt. Além disso, nos canais de Veneza, as águas tornaram-se mais límpidas após o período de isolamento. Isso ocorreu devido à baixa circulação de embarcações na região, que deixavam a água com aspecto turvo.