Crítica // Tia Virgínia ####
À parte, marginalizadas, vivem Virgínia (Vera Holtz) e a quase centenária mãe dela, Cândida (Vera Valdez). No papel de uma tia, que esqueceu, ou melhor, abriu mão dos sonhos, Holtz brilha com profundidade e mais do que mereceu o prêmio de melhor atriz vencido no último Festival de Cinema de Gramado. Festivo e proponente de tons inesperados, o Bolero de Ravel — integrado à trilha sonora do filme conduzido por Fabio Meira — cabe à perfeição na trajetória da mulher que, abnegada, recebe para festejos natalinos as irmãs Vanda (Arlete Salles) e Valquíria (Louise Cardoso). Com a experiência falando alto, as três atrizes elevam os ânimos das personagens e a sutileza cênica que abraça drama e graça.
Tia Virginia é daqueles raros exemplares de dramas familiares bem-costurados, a exemplo de Querido estranho, Bendito fruto (também com Holtz), e Ela e eu. Trata, no fundo, de conquistas — mas advindas por meio de perdas e decepções. Rico, o roteiro assinado por Fabio Meira explora o que seria o desgastado e mantido longe do gosto popular: há ópera, exposição de objetos antigos (alguns até dispostos em cristaleiras) e, sim, apresenta ainda a flacidez e a imobilidade da velhice (sem a leveza de um longa nacional como Depois daquele baile, também centrado na terceira idade). Fermentado por irreparáveis acontecimentos do passado das personagens, o enredo abraça a vertente da reinvenção e aponta para soluções numa linha cara ao cinema nacional, como atestam fitas como Vagas para moças de fino trato e As meninas.
Entre os coadjuvantes, todos encontram o espaço e a plenitude, como mostram Daniela Fontan, na pele de uma afeiçoada sobrinha, e Antonio Pitanga, no papel de um marido sem tanta voz ativa. Para completar o bom andamento, sem muito drama, o repulsivo exercício do patriarcado dá os ares da (des)graça, com uma relação desencontrada entre a empregada Soraia (Amanda Lyra) e o paparicado Bernardo (Iuri Saraiva, artista formado em Brasília). Por fim, a escolha das músicas (na autoria de Milton Nascimento, Cais e Um gosto de sol) é bem interessante.
Entrevista// Fabio Meira, diretor
Há lacuna de filmes que retratam a classe média no cinema brasileiro?
Certamente. Nossa cinematografia está calcada em território urbano, dos submundos, das favelas e em territórios extremos, como os sertões ou cenários de exuberância natural. O cinema brasileiro tratou da elite em filmes importantes, mas raras vezes tratou dessa sociedade do interior, muito menos do Centro-Oeste brasileiro. Acho importante falar dessas famílias de classe média que a princípio não possuem nada de exuberante, mas basta vê-las de bem perto para perceber o maravilhoso e profundo universo que elas abarcam.
Como é um homem conduzir um filme com questões tão delicadas e pertinentes para as mulheres?
Desde meu primeiro curta trato de personagens femininas. Já são mais de sete filmes com elas narrando as histórias. Ora na ficção, ora no documentário, como nos dois filmes que fiz sobre as jogadoras de vôlei dos anos 90, Pátria e O discreto charme de uma campeã. O próximo filme também será assim. Para mim é natural, faz parte do que sou e não entendo por que até hoje ainda tentam dividir as pessoas por gênero.
Como foi prevista a cena da ceia? Houve muito ensaio?
É a cena mais importante do filme e estou muito feliz com o resultado. Dramaturgicamente, a cena da ceia inclui todos os temas do filme. Fizemos ensaios, testes para a maquiagem e o vestido foi refeito mais de uma vez. Vera está sublime nessa cena, assim como todo o elenco e como o operador de câmera, já que se trata de um plano sequência longuíssimo. A equipe de arte e contra-regragem também teve papel essencial. Para se chegar em um resultado como esse, é necessário que muita gente tenha executado seu trabalho com primor e entrega.
Bergman é nitidamente uma inspiração, não? Quem mais te forjou no desenvolvimento do filme?
Sobretudo as histórias reais de minha família. É a partir delas que decido fazer o filme, e daquela maneira. Entendo a menção a Ingmar Bergman, mas devo dizer que aquele relógio que tanto remete a ele é o relógio dos meus avós, convivo com ele desde a infância, está conosco há mais de 80 anos. Para mim era importante misturar realidade e ficção também nos objetos. Além do relógio estão as fotos, roupas de cama, quadros, todos eles já vêm com suas próprias histórias e ajudam a narrar com a profundidade que a história exige. Ainda farei mais um filme sobre família, o último, assim espero.
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br