Artes cênicas

Clássico de Nelson Rodrigues reflete sobre o apagamento feminino

Camila Morgado sobe ao palco para viver Zulmira, heroína de Nelson Rodrigues na peça 'A falecida'

Camila Morgado em A falecida, peça de Nelson Rodrigues -  (crédito: Victor Hugo Cecatto)
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Camila Morgado em A falecida, peça de Nelson Rodrigues - (crédito: Victor Hugo Cecatto)

De tanto emendar um trabalho audiovisual no outro, Camila Morgado se deu conta de que havia passado 11 anos longe dos palcos. Decidiu então voltar ao teatro em 2023, com uma versão de A falecida, clássico de Nelson Rodrigues em uma montagem comemorativa dos 70 anos de estreia da peça dirigida por Sérgio Módena. "É um artista com quem sempre quis trabalhar. Aceitei de imediato, pois sempre quis me experimentar em uma peça de Nelson Rodrigues; falar aquelas palavras com aquela pontuação e poder entender um pouco mais deste universo tão carismático, psicológico, forte e primitivo", conta a atriz, que traz A falecida a Brasília em sessões até domingo (16/2), na Caixa Cultural.

Em A falecida, Rodrigues conta a história de Zulmira, uma mulher tuberculosa à beira da morte que implora ao marido para procurar o empresário milionário Pimentel e pedir que pague para ela um enterro luxuoso. Zulmira quer, aparentemente, causar inveja na prima Glorinha, com a qual mantém um relacionamento distante. A trama é um tanto surreal, mas o marido Tuninho executa o último desejo da doente sem entender muito bem como ela conheceu o empresário. "Zulmira é uma heroína trágica, que quer ser escutada, ter voz e relevância em um casamento e em uma sociedade que não a vê como tal. É um dos personagens femininos mais complexos de Nelson, porque ela transita por diferentes temperaturas como a raiva, obsessão, inveja, amor, desejo, ódio", explica Camila.

Quando se depara com o milionário, Tuninho descobre que ele e Zulmira eram amantes. Diante das ameaças do marido traído, que ensaia revelar tudo em um jornal, Pimentel concorda em entregar o dinheiro. Zulmira, no entanto, enterra a mulher como uma pobretona e aposta o montante em um jogo de futebol. Em forma de tragédia, o texto é um clássico rodrigueano escrito em 1953 e cheio de costumes de época, mas também pontuado por situações que ainda marcam a sociedade brasileira. "Ela enxerga no luxo do seu enterro uma oportunidade de ter um holofote sobre si, como se finalmente aparecesse a chance de ser olhada, admirada e reverenciada. Uma forte simbologia sobre o apagamento do feminino", aponta a atriz.

 

Serviço

A falecida

Com Camila Morgado, Thelmo Fernandes, Stela Freitas, Gustavo Wabner,

Alcemar Vieira, Alan Ribeiro, Claudio Gabriel / Thiago Marinho. Direção: Sergio Módena. Hoje, às 20h, amanhã, às 20h e às 17h30, e domingo, às 19h, na Caixa Cultural. Ingresso: R$30 e R$15 (meia)

 

Entrevista//Camila Morgado                                                                                                                   

Como dar frescor a essa obra tantas vezes montada e encenada?

Nelson Rodrigues é um escritor que sempre li e quis fazer, de uma importância imensa para nossa cultura e formação. Popular e erudito em sua escrita, revolucionou o teatro brasileiro. Sinto que montar Nelson, um texto clássico de nossa dramaturgia, é revisitar nossa história e também nosso processo cultural. A Falecida foi escrita em 1953 e ainda se comunica tão bem com o público, com temas que ainda são muito relevantes para nós. 

Como você encara a busca por dignidade da personagem?

Quando lemos Nelson, vemos que os personagens perseguem valores morais, mas sentem também um prazer mórbido em transgredi-los. São dominados pela violência da paixão, pela obsessão, pela loucura. São movidos por forças legítimas da natureza humana, instintivas. Muitos negam a racionalidade, a sensatez, o equilíbrio. Portanto, falar da dignidade de Zulmira neste universo rodrigueano é algo delicado. Zulmira busca o respeito, a dignidade, a felicidade em um ideal inalcançável.

Que aspectos contemporâneos você enxerga em A Falecida? 

A peça aborda questões muito boas como o apagamento feminino dentro desta sociedade construída pelos homens e para os homens na qual vivemos e também o fundamentalismo religioso como uma obsessão, um salvamento, uma idealização de um mundo melhor e sem culpa.

Qual o lugar do teatro na sua carreira? E o que ele te traz que a televisão e o cinema não trazem?

Gostaria de deixar claro que eu gosto tanto do teatro, quanto do cinema e da televisão. São lugares que me inspiram bastante e me permitem enxergar um pouco mais das obscuridades de que somos feitos. Mas, quando falamos do teatro, existe sim, algo que podemos chamar de mágico, que é a relação com o público, a plateia. Esta relação é muito profunda e sutil porque ela não se repete, cada dia será diferente e cada dia ela é feita pelos atores e pelo público. Juntos. A outra coisa é a presença física, corpórea de todos os envolvidos. Nos dias de hoje, tão digitais, o corpo presente é uma experiência que nos ajuda e nos transforma.



  • Camila Morgado em A falecida, peça de Nelson Rodrigues
    Camila Morgado em A falecida, peça de Nelson Rodrigues Foto: Victor Hugo Cecatto
  • Camila Morgado em A falecida, peça de Nelson Rodrigues
    Camila Morgado em A falecida, peça de Nelson Rodrigues Foto: Victor Hugo Cecatto
  • Para Camila Morgado, a peça trata de apagamento feminino
    Para Camila Morgado, a peça trata de apagamento feminino Foto: Victor Hugo Cecatto
Nahima Maciel
postado em 14/02/2025 07:00 / atualizado em 14/02/2025 07:36