Crônica

A nuvem e o canalha

Temos no jornal um colega, o Oliveira, apelidado carinhosamente de "o canalha da redação". Ele implica com o simpático conceito filosófico de "modernidade líquida". L

Por Sérgio Leo—Temos no jornal um colega, o Oliveira, apelidado carinhosamente de "o canalha da redação". Ele implica com o simpático conceito filosófico de "modernidade líquida". Líquidos, a gente guarda em algum recipiente, preserva na geladeira, bota no freezer para descongelar mais tarde, argumenta, "O que anda desmanchando no ar são nossas memórias, nossos registros guardados em meio eletromagnético", reclama Oliveira. Ele considera toda inovação tecnológica útil e tão pouco confiável como tampa de iogurte, aquela capinha de alumínio com mania de rasgar onde não deve.

Quem tem, em casa, fitas de videocassete com as memórias dos filhos, hoje um emaranhado de plástico grudado, sem aparelho eletrônico que consiga mostrar as imagens ali gravadas, sabe do que fala nosso canalha da redação. Também sabe disso quem já perdeu o celular onde se depositavam centenas de fotografias e vídeos da família, dos amigos, da comida e lugares visitados e registrados para dar inveja nos outros.

Ora, dirá você, sempre teremos a nuvem. Nome apropriado para o que, na realidade concreta, não passa de uma rede de computadores abrigados em lugar desconhecido, sujeita a acidentes, e a caprichos dos proprietários das máquinas onde se guardam arquivos que pensamos ser nossos, de nossas redes sociais.

"Os maias e astecas já sabiam, muito antes dos filósofos contemporâneos, que, se há uma coisa que se desmancha no ar são nuvens", teoriza Oliveira. "Até as nuvens de chuva que a gente comemorou neste fim do ano aqui em Brasília, veja você o que fizeram, as enxurradas que afogaram as avenidas da cidade!"

O patife culpa as pobres chuvas por problemas bem terrenos, mas tem sua gota de razão; nuvens nem sempre são lá muito confiáveis. Como descobriu recentemente um usuário de leitor eletrônico de textos (um "reader", em português contemporâneo), ao ver que a Big Tech responsável pela venda dos livros havia brigado com uma editora e retirado unilateralmente várias obras que ele havia comprado e baixado. "Já se foi o tempo em que usavam fogueiras para acabar com os livros!", brada Oliveira, agitando perigosamente o copo de café.

Não faz muito tempo, o temor dos que prezam a memória era o risco de uma grande explosão eletromagnética, vinda de alguma atividade solar anormal, capaz de atingir a Terra e interferir em tudo que dependesse de eletromagnetismo e computação, rompendo redes e apagando gravações. Hoje, nosso mundo não acaba em explosões, mas em arquivos eletrônicos que expiram silenciosamente.

Nas nuvens, perdem-se páginas, sítios inteiros. Atire o primeiro chip aquele que, na Universidade, nunca viu um link citado em texto acadêmico levar o leitor a uma página morta. Legiões de notas de rodapé sugerem consulta a lugar nenhum. Triste consolo para quem, como Oliveira, sempre detestou notas do rodapé.

Mas Oliveira, esse patife, é inventivo, e garante que tem a solução para o problema. Um meio confiável para guardar lembranças, um suporte estável, confiável, de durabilidade testada e garantida. "Será revolucionário!", garante ele, ao falar de sua invenção: "vão adorar; pretendo dar a ela o nome de...livro".

Sergio Leo é jornalista e escritor, autor de Mentiras do Rio.

 

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