Crítica

Com passaporte para o Oscar, filme de Walter Salles é real diamante

Filme dirigido por Walter Salles narra o drama do desaparecimento de Rubens Paiva durante o regime militar e as consequências para a família dele

Crítica// Ainda estou aqui ★★★★

Nos anos de 1970, uma família vive a plenitude da felicidade: desfrutam da praia, tem a casa frequentada por incontáveis amigos e vislumbram o futuro, que pode estar na vibração da chegada de um cachorro no lar ou no projeto da construção de uma nova residência. Ao som de Take me back to Piauí (com Juca Chaves), a prole do engenheiro e ex-parlamentar Rubens Paiva (Selton Mello, em breve mas afável participação) e da culta (e futura advogada) Eunice — papel a cargo do talento de Fernanda Torres — ocupa o sensível e maduro cinema de Walter Salles (pela vida, lembrado por Central do Brasil).

O mundo letrado da família Paiva, que traz estampado na parede imagens de clássicos como A chinesa e Psicose e uma vitrola que toca a escandalosa música de Jane Birkin, é invadido pela taciturna desgraça impressa pela ditadura. "Perdidos, os milicos estavam atrás de qualquer um", como diz um personagem do filme, e, na pressa, associaram Paiva, afirmado no Partido Trabalhista Brasileiro, como alguém "ligado aos comunistas" e de quem precisavam confirmar que, em 1964, efetivou medidas "para conspirar contra (a chamada) revolução". Após cassado e exilado; à revelia, em casa, foi levado para o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa).

Tal qual no cotidiano fraturado, Rubens Paiva, no filme, paira como uma ausência. A prova da prisão (sempre negada) ameaça escapar das mãos dos parentes e amigos. Na base da ironia, no filme, um dos algozes da família Paiva se diz " especialista em parapsicologia", como meio de clarear a ação espúria do governo.

Em poucas cenas relaxada, Fernanda Torres passa da atenta, afetuosa e fiscalizadora mãe de cinco (entre os quais o futuro Marcelo Rubens Paiva) a um radar antenado nos riscos iminentes. Entram em cena noticiários sobre a troca de prisioneiros políticos, a percepção de que Brasília "pega fogo" e, claro, a extremada carga de preocupação da Eunice da tela. Com senso diplomático, numa primeira via, busca imprimir cordialidade junto as representantes da ditadura. Lógico, o caminho é inócuo.

Atenta e em estado de permanente alerta, mas, igualmente, incrédula, Eunice decifra cada sinalização do porvir em doses de pesadelos. Os delicados cuidados com filhos e os gestos de amor, entretanto, persistem. Exausta, num cenário em que bitucas de cigarro caem num chão ensanguentado da sala de um investigador, Fernanda Torres chega à estatura de uma Anna Magnani; apenas, contida. A boca trêmula, as inesperadas algemas e o destino de uma cela engrossam o drama. Nada nunca faz (ou fará) sentido. Sem apelação, o firme olhar da atriz denuncia.

Demonstrar tristeza acusa um fraquejar que inexiste na personagem central. Eunice renega choros: pode até entrever e vasculhar a felicidade alheia (como na segunda cena da sorveteria), mas se determina a lidar com cartas, arquivamento de inquérito, registros de prisão e certidão de óbito. A organização de memórias é dado mais do que importante para a família Paiva, e vital para Eunice (que ganha uma síntese suprema, com a presença de Fernanda Montenegro). Walter Salles tem ampla percepção disso e embute no filme uma dolorosa cena de enterro, simbolicamente, tomada pelo fervor de uma válvula de escape, e estendida para uma situação introspectiva de luto que vem embalado por significativa elipse cinematográfica.

 

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