Crítica

O quarto ao lado, novo filme de Pedro Almodóvar, estreia nos cinemas

Longe das habituais reviravoltas, Almodóvar embarca num protocolar drama sobre a despedida da vida

Julianne Moore e Tilda Swinton em cena de O quarto ao lado, de Almodóvar -  (crédito:  Warner Media/Reprodução)
Julianne Moore e Tilda Swinton em cena de O quarto ao lado, de Almodóvar - (crédito: Warner Media/Reprodução)

Há uma situação de extrema impessoalidade externada pela protagonista de O quarto ao lado, Martha (Tilda Swinton) incapaz de um relacionamento sadio com a filha. Hábil em contar histórias (como correspondente de guerras), Martha está pronta para um capítulo final no cotidiano, disposta a encurtar a vida atrapalhada pela crueldade de um câncer. "Terminal" e "incurável" são expressões perto do abismo, já que, por livre escolha, ela determina se apressar à morte, recorrendo ao devastador efeito da pílula letal que adquire na deep web (como no ambiente do recente A substância).

Esqueça as complicações, sobreposições e reentrâncias de narrativas às quais estamos acostumados quando se trata de um Almodóvar. Ele até ameaça engordar a trama com enredos como a discreta e carinhosa relação entre missionários carmelitas que se amam em tempos de guerra. Mas para os católicos de plantão, o pecado mora ao lado e atende pelo personagem de Julianne Moore, não à toa escalada para o filme, já que, em Longe do paraíso (2002), balizou a homenagem ao mestre do melodrama Douglas Sirk, a quem o Almodóvar tanto idolatra. Baseado em enredo de outra fonte (um texto de Sigrid Nunes), o novo filme traz certa assepsia em relação aos sempre caudalosos sentimentos e humor exacerbado de Almodóvar. Parece reflexo da primeira incursão no inglês.

Com citação direta ao quadro People in the sun, o cineasta dá conta de embarcar no retrato do pintor Edward Hopper que celebrou naquela obra um grupo de turistas desmotivados. Ainda que o falatório brabo entre personagens acuse algo de vivacidade, Martha se vê encurralada pela morte, e até ensaia reações ostentando uma maquiagem (em tom explosivo) para sua preparação enquanto defunta. Um ponto fraco é o de as marcas da suposta participação da personagem em conflitos de guerra inexistirem. As cores e flores legítimas do diretor seguem em quadro, assim como a precisão de cada movimento de câmera, isso mesmo que na pioneira colaboração com o diretor de fotografia Eduard Grau.

Quem segue firme na equipe, fazendo toda a diferença, é o compositor Alberto Iglesias (de Má educação e Carne trêmula, além das recentes incursões em médias, com Estranha forma de vida e A voz humana). Sempre festivo na comunhão de uma fauna, Almodóvar se restringe, num dueto feminino que se fixa na "contravenção", às vistas norte-americanas, da eutanásia. O personagem policial de Alessandro Nivola fica, onipresente, à espreita de deslizes de Ingrid. O diretor espanhol, sabiamente, recorre à exibição do clássico de Buster Keaton (Sete oportunidades, de 1925) para dar uma aliviada quanto a jocoso tema da herança financeira (a ser enfrentado por Martha). De leve, o diretor de Fale com ela (2002) trata de tensão no Iraque e das mudanças climáticas, com ar de distanciamento.

Numa das melhores cenas, com Julianne Moore e o ex-jogador de rugby Alvise Rigo, prevalece uma serena centelha de reflexão, quando o personal trainer trata do trágico andamento da sociedade, com os puristas monitorando (e impedindo) o contato físico entre profissionais como ele e o corpo de alunos. Saudades do Almodóvar que até ensaia, num discurso, exaltar o sexo como modo de se afastar da morte (a exemplo do impactante Dor e glória, de 2019). A exuberância fica apenas na citação dos róseos flocos de neve por cima de pessoas e de covas.

 


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postado em 25/10/2024 07:08
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