Por Dante Accioly
E-mail: dante.accioly@gmail.com
Éramos dois estranhos sentados numa parada de ônibus da Asa Norte. Eu havia tocado em algum barzinho ali por perto e esperava o corujão que me levaria de volta para casa, em Sobradinho. O violão pendurado nas costas, a fome beliscando as beiradas do estômago e o dinheiro do cachê escondido dentro da meia. De repente, o desconhecido berrou:
— Sou o Homem Sépia!
Levei um susto que me arrepiou o espinhaço. O sujeito deu um pinote do banco de cimento e parou em pé bem na minha frente. Ele estava todo de preto: calça, camisa social e coturnos até o meio das canelas. Por trás de uns óculos escuros espelhados, tudo o que se via daquele rosto eram os lábios grossos e umas bochechinhas rosadas. Quase infantis.
— Sou um super-herói! — ele gritou.
Eu estava com medo, claro. Mas tentei demonstrar empatia:
— Olha que interessante… Como é seu nome mesmo, amigo?
— Sépia! Homem Sépia!
— Sépia?! Aquele “pum” que o polvo solta para fugir do tubarão?!
Ele não respondeu. Tirou do bolso um maço de papéis com o desenho de um polvo alaranjado. Pareciam figurinhas repetidas de um álbum. A cabeçorra, os olhos esbugalhados, os tentáculos e as ventosas ameaçadoras. O homem esticou a pontinha dos dedos e me ofereceu uma cópia — como um cartão de visitas.
Antes que eu pudesse agradecer a gentileza, o ronco de um escapamento furado desviou meu olhar para o Eixinho. O zumbido começou lá longe — distante, grave e monótono como um canto gregoriano. Mas foi se tornando cada vez mais próximo, alto e estridente.
Vruuuuum!
Um velho Passat rasgou o asfalto rumo à Ponte do Bragueto. Logo atrás dele, o flash de uma luz muito branca incandesceu minhas vistas. Era a deixa que faltava. Num espasmo, o Homem Sépia sacou de um dos bolsões da calça uma lata de tinta spray. A esfera de metal chacoalhava dentro do tubo.
Como um Clark Kent na cabine telefônica, ele se escondeu atrás da parada de ônibus e saiu instantes depois com uma escadinha dobrável. Caminhou decidido até o poste do outro lado da rua. Subiu os degraus da banqueta e — cheio de salamaleques — desabotoou um dos punhos da camisa social. Um tentáculo gorducho começou a se projetar para fora da roupa. O braço molusco se esticou até o topo do poste e poderia ter ido além. Nem precisava da escadinha, pensei.
Com a lata de spray encaixada nas ventosas, o Homem Sépia esguichou dois generosos jatos de tinta preta contra o radar de velocidade que havia multado os excessos do velho Passat. O “pardal” estava cego.
Quando outro motorista desavisado passasse por ali acima dos 60 km/h, o Detran receberia em seus computadores a imagem de uma inexplicável nuvem negra. Um borrão imprestável. Uma fotografia inútil para comprovar novas infrações. Era tudo o que o Homem Sépia queria: despistar e confundir as autoridades de trânsito.
— Aqueles predadores! — bradou!
Nosso herói desceu da banqueta e colou no poste uma das figurinhas do polvo alaranjado. Como um Zorro, que deixa sua marca com a ponta da espada.
— Esse tubarão aqui não morde mais ninguém!
Com o tentáculo recolhido e o punho da camisa abotoado, o Homem Sépia fez sinal para um ônibus que passava no Eixinho. Entrou furtivo pela porta traseira do “baú” e foi embora sem olhar para trás. Tirei o violão das costas e deitei no banco de cimento. Eu havia acabado de perder o último corujão para Sobradinho.
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