CRÔNICA

Com que roupa?

Crônica de Tarciano Ricarto

 Jornalista Tarciano Ricarto. -  (crédito:  Arquivo Pessoal)
Jornalista Tarciano Ricarto. - (crédito: Arquivo Pessoal)

Para mim, o samba salva, cura e liberta. Se estou triste, vou para o samba. Se estou alegre, vou também. Não preciso “estar nem feliz nem aflito”, como compôs João Nogueira. Sinto que o samba tem um quê de materno/divino, que me acalanta, e de vadio/profano, que me alforria. Assim como Clementina, fui feito pra vadiar. E, nessa vadiagem, fiz amigos que me acompanham até hoje. Alguns, há mais de 15 anos - de samba em samba. Não é só boemia, é afeto também.

Uma lembrança feliz da minha infância é a imagem de minha mãe me acordando pela manhã com uma música de Paulinho, famosa na voz de Clara: “Galo cantou às quatro da manhã, céu azulou na linha do mar...”. É a memória afetiva mais remota que eu tenho de um samba. Por desejo, é ele que eu quero que toque quando eu partir dessa vida: “Vou me embora desse mundo de ilusão, quem me vê sorrir não há de me ver chorar”.

Até que esse dia chegue, plagiando Candeia, “quem quiser pode ir, eu vou ficar aqui”. E, por enquanto, vou ficando por Brasília, terra onde eu escolhi viver há 25 anos. Onde eu descobri, nas encruzilhadas da cidade dita sem esquinas, o povo da rua que bebe, brinda, gargalha, samba e “canta forte, canta alto” com Martinho.

Brasília, a cidade que se projetou musicalmente nos anos 80/90 com o rock nacional, sempre foi generosa com outros ritmos. O samba esteve em sua gênese, desde quando o bonde carioca saiu da antiga capital do Brasil para fazer daqui um ponto de parada: “Juscelino me chamou, eu vou morrer de saudade, mas vou. Adeus, Mangueira. Adeus, meu Vigário Geral. Adeus, meu samba. Adeus, capital federal”.

Os versos de Herivelto Martins e Grande Otelo traduzem a melancólica despedida daqueles milhares de cariocas que partiram rumo a uma Brasília empoeirada, feia (até então), fria (em todos os sentidos) e desértica. Guardadas grandes proporções, possivelmente uma espécie de “banzo” (aquela saudade extrema que negros escravizados sentiam da terra de origem) deve ter batido em alguma medida naqueles que vieram pra cá carregando a ancestralidade dos morros, terreiros e batuques cariocas.

 

Brasília virou terreno fértil para um samba que se viu refletido na composição de d. Ivone: "Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho", para crescer e se multiplicar por essas terras. Com a benção dos mais velhos, a geração de sambistas que chegou mais recentemente soube respeitar esse legado e seguir a batuta dos antigos mestres. Há um bom tempo, cantores, compositores, instrumentistas, grupos, projetos e rodas de samba se espalham por todas as cidades do Distrito Federal.

 

Raro o dia que não tem um batuque por aqui. Aos fins de semana, o cardápio é vasto. Recentemente, eu e um grupo de amigos e amigas maratonamos três sambas seguidos num único sábado. Quase 12 horas ininterruptas: Clube do Choro (samba com feijoada que ocorre todos os sábados), Samba da Tia Zélia (quinzenalmente, aos sábados, na Vila Planalto) e, por fim, samba do "Na Seis Comida de Bar" (todas às sextas e sábados à noite na 706 Norte). No dia seguinte, fomos para mais um: samba do Buraco do Tatu (quinzenalmente, nas noites de domingo, na Birosca - Conic).

 

Sábio Zeca quando canta: “Amigo eu nunca fiz bebendo leite. Amigo eu não criei bebendo chá. Eu sou da madrugada, me respeite, que eu sei a hora de ir trabalhar”. A você - amigo da vida que passou a me acompanhar no samba e do samba que entrou definitivamente na minha vida - meu "muito obrigado" por atualizar em mim a mesma dúvida que afligia Noel lá em 1930: "Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou?". Que essa dúvida sobreviva por muito mais tempo, amém!

 

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postado em 21/06/2024 07:00
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