Por Beto Seabra — Leitores mais apressados talvez vão achar absurda a minha correlação. Mas, sempre que vou ao Eixão do Lazer, nos domingos ensolarados, lembro-me de Nelson Rodrigues. Quando vejo aquele espaço apinhado de gente brincando, praticando esportes ou jogando conversa fora, penso no genial escritor pernambucano. Calma que já explico.
As ruas foram feitas para as pessoas. Até um urbanoide empedernido como Nelson Rodrigues, que dizia que quando se aproximava do subúrbio carioca já sentia uma saudade doída do Rio, concordaria comigo.
Eu que passo todos os dias pelo Eixão a caminho do trabalho aproveito o conforto de ter uma rodovia que corta a minha cidade e onde posso dirigir a 80km por hora sem interrupção. O problema é que esse conforto se dá à custa dos pedestres. Os que vivem do ônibus ou do metrô, que são a grande maioria, e que precisam atravessar o Eixão ou qualquer das outras vias de Brasília de livre trânsito, sabem o que quero dizer.
É aí que me lembro do Nelson Rodrigues. Ele dizia achar a velocidade um prazer de cretinos. "Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegavam nunca", escreveu ele em uma de suas crônicas.
Também detesto a velocidade, especialmente em uma cidade habitada por milhões de pessoas. Em um autódromo, vá lá. Mas nas ruas? Pra que serve correr de carro, além de causar acidentes, atropelamentos e assustar pedestres? É por isso que sinto um prazer quase orgíaco em ver aquelas multidões ocupando o Eixão aos domingos, mandando para as garagens e estacionamentos os automóveis.
Cássia Eller
Então a memória traz outra lembrança, esta mais próxima de mim. Estávamos em 1988. Convidamos a Cássia Eller para cantar num barzinho que tinha como sócios amigos de infância da SQN 312. Seria o grande momento do Arrumadinho, esse era o nome do bar. O Eixão do Lazer ainda não existia, pois só passaria a ser interditado aos domingos a partir de 1991, por sugestão do professor de educação física Hezir Espíndola, da Universidade de Brasília (UnB).
Eu estava sem carro e vinha caminhando de onde morava, perto da avenida W3, até o bar localizado na comercial da 211 Norte. Devido ao grande movimento de carros no Eixão, procurei uma passagem subterrânea. Mas lembrei de que elas haviam sido fechadas pelo governo, com caminhões de terra, para evitar que famílias de sem-teto usassem as travessias como moradia, como de fato fizeram por alguns meses. A miséria era grande no Brasil no final dos anos 1980.
Plantei-me na beira do Eixão, esperando abrir uma brecha no trânsito, enquanto rezava pela Nossa Senhora do Cerrado, citando de cor o poema do Nicolas Behr. Ainda não conhecia a Noélia, para a casa da qual os versos do poema se dirigiam, e não sei se ela foi ao show da Cássia Eller no Arrumadinho.
Consegui chegar são e salvo do outro lado da pista e vi uma inesquecível apresentação musical da nossa adorada anti-musa, ao lado dos amigos da UnB e da SQN 312. Se Cássia estivesse entre nós (e ela está, na verdade) certamente acharia um barato o Eixão de hoje, repleto de músicos, bebuns e atletas, e sem carros velozes e furiosos soltando uma fumaça do mal.
*Beto Seabra é jornalista e escritor