Cinema

Na telona: a dor da experiência com o suicídio, em 'A metade de nós'

A partir de uma forte experiência pessoal, o diretor Flavio Botelho registra, com autenticidade e olhar sensível, o drama de 'A metade de nós'

 2024. Divirta se Mais. Filme  A metade de nos. -  (crédito:  Pandora Filmes)
2024. Divirta se Mais. Filme A metade de nos. - (crédito: Pandora Filmes)

Crítica // A metade de nós ★ ★ ★ ★

A aspereza de uma situação incontornável estampa na tela do filme de estreia conduzido por Flavio Botelho. Junto com os roteiristas Bruno Castro e Daniela Capelato, ele reelaborou uma dor que lhe é familiar, e verteu tudo num cinema denso, compromissado com alertas e encharcado de empatia. No filme, Francisca e Carlos perdem o filho Felipe para o suicídio.

O rigor da edição de Tina Hardy combina com a carga emocional impressa na direção, num enredo que consome, ao mesmo tempo em que verte profundidade e honestidade. Numa das cenas mais dolorosas — o pai confessa ao vizinho de Felipe (uma forte presença de KelnerMacêdo, visto em Corpo elétrico) que nem mesmo ele se vê categorizado, não se vê viúvo nem órfão.

Para além da exploração de cada canto de espaço, os pais se movem em dinâmica circular, pouco ajustada a dar respostas, e ainda se apartando, por comportamentos opostos. O longa recebeu prêmios de melhor ator em Punta del Este (Uruguai) e foi eleito o melhor, pelo público da Mostra de São Paulo, sem contar a Menção Honrosa para os atores (no Festival MixBrasil).

Entrevista // Flávio Botelho, cineasta

Qual a sua experiência com o tema do suicídio?

Eu perdi uma irmã que se suicidou em 2007. Ela teve uma forte depressão no pós-parto. Ela parou de amamentar e começou com acompanhamento médico de um psiquiatra, além do suporte da psicóloga. Quando ela começou a melhorar da depressão, quando começou a reagir, ela se suicidou. Foi uma tragédia imensa para toda a família, principalmente porque a família estava naquela euforia que era o nascimento da primeira neta, a primeira sobrinha, para uma tristeza muito profunda de despedida da Paula.

Qual foi a reação dos familiares?

A gente ficou tentando processar essa tragédia por muito tempo. Eu fiquei muito próximo dos meus pais, a gente recebeu muito acolhimento da família, amor de muita gente e, nesse meio tempo, também ouvimos muita coisa, inclusive, que a gente ficaria estigmatizado, que não se poderia falar no assunto, pelo fato do tema ser tabu. Foi muito duro ouvir isso naquele momento, quando a gente ainda estava tentando entender tudo aquilo, cheio de porquês na cabeça, cheio de questões, sentindo as mais diferentes coisas. Mas meu pai, ao invés de ficar no silêncio, fez um movimento que eu acho muito legítimo, muito bonito, ele escreveu um livro chamado Prematura. E, depois de sete anos que a minha irmã morreu, eu também fiquei com vontade de falar sobre o assunto. O tema se tornou pungente, urgente e necessário dentro de mim e o cinema, como minha forma de me expressar, foi meu caminho natural. E fui pelo caminho da ficção.

Que confiança depositou nos atores e em que corresponderam?

Desde o início queria ensaiar, achava que a aproximação com os atores, a construção dessa gênese dos personagens e o mergulho no tema seria importante. O nome da Denise Weinberg apareceu algumas vezes, até que marcamos um café. Ela leu o roteiro e topou na hora entrar no projeto. E naturalmente o nome do Cacá Amaral surgiu na sequência para fazer o Carlos. Eles são parceiros de longa data e tem muita química juntos. Ensaiamos por três meses e foi transformador. Discutimos sobre as cenas, sobre a narrativa, alteramos diálogo, mexemos em sequências e trouxemos memória para o corpo, para trazer camadas sobrepostas na interpretação. E todo esse trabalho refletiu no resultado. Tem uma complexidade de sentimentos dos atores em cena que trás uma imensa credibilidade para Francisca e Carlos.

Quais são os diretores que admira?

Gosto bastante do cinema do chileno Sebastián Lelio, especialmente sua obra Glória e a forma como conduz a narrativa, cheio de elipses temporais e o retrato sem julgamento de personagens que costumam passar desapercebidos no cinema. Também admiro muito o cinema de Michael Haneke. Ele costuma explorar realidades duras, e Amor é um grande filme nesse sentido.

 

 

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postado em 31/05/2024 11:39 / atualizado em 31/05/2024 12:02
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