Cinema

Afiada expressão do desejo: confira a adaptação para Lispector no cinema

Com 60 anos de distância, desde a primeira publicação, o livro A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, ganha vertiginosa adaptação pelas mãos do mesmo cineasta de Lavoura arcaica

 Maria Fernanda em A paixão segundo G.H.: trama vertiginosa -  (crédito:  Paris Filmes/Divulgacao)
Maria Fernanda em A paixão segundo G.H.: trama vertiginosa - (crédito: Paris Filmes/Divulgacao)

Crítica // A paixão segundo G.H. ★ ★ ★ ★

Longe de enfadar, A paixão segundo G.H., é preciso salientar, envolve a declamação de um espesso texto que, carregado, na tela, desafia a concentração do espectador, em alguns momentos. Nas bordas de um precipício imaginário, retido pelo roteiro, uma mulher da elite sessentista fica, à deriva, entre razão, consciência e a mais enervante emoção. As primeiras notas do filme, com música em tons marcantes, acusam um clima de sondagem e provocativas imagens distorcidas, com um sentido de transe e ainda direito a um berro distendido de horrores encapsulados pela protagonista (Maria Fernanda Cândido). Liturgicamente, o filme bebe da cátedra de Clarice Lispector, gestora primitiva da trama adaptada pelo cinema de Luiz Fernando Carvalho.

Tédio, gravidez, sonhos, sedução, preconceitos e austeridade, junto com a ginga de G.H., a protagonista, em se revalidar na vida, tomam conta do filme dotado de primorosas fotografia e direção de arte, respectivamente, da dupla Miqueias Lino e Paulo Mancini, e João Irênio. A inquietação diante da entrega (sem volta) a um embate, entorpecente, direciona G.H. à construção e desestruturação de discurso interno, no qual ela rearranja, em meio à desorganização profunda, os conceitos e visões que tocam até mesmo a desconsideração pela antiga empregada doméstica (Janair, papel reservado a Samira Nancassa).

Frente à frente, G.H. e Janair — além de uma onipresente barata — terão encontro decisivo, que resulta no desprezo por antigas limitações machistas e na contestação do significado e do alcance do amor de G.H.. Curioso que se faça um raixo-X do animal (visto até em versão negativa), ao passo que a solidez da vida de G.H. passa à condição etérea, com dissolução de luxos, desprezo pela moralidade e dedos em riste, que parecem antenas a captar a sensibilidade. Na exaustiva jornada da personagem, o trabalho de Maria Fernanda Cândido vem como um ensaio com ampla criação e entendimento (para usar expressões do texto original).

A instabilidade mental e um sentido de renúncia extremada movem G.H. — nesse desprendimento, tal qual no romance, vem a percepção de que a inicial promessa de vida se efetive, e a personagem passe "a viver". G.H. deixa de ser bipartida (como a barata fora). Por vezes, afetado à la editorial da Vogue, o cinema de Luiz Fernando Carvalho (espetacular, em Lavoura arcaica) segue majestoso, e com vertentes visíveis: bebe de Luchino Visconti (Morte em Veneza que o diga), traz a introspecção de Bergman (no aspecto de janela com quadro de projeção europeu e ainda no dado da busca pelas "raízes da identidade" de G.H., que se "funde" a outro ser) e a densidade de Elia Kazan (em Vidas amargas). A trilha sonora, por vezes kitsch, funciona para o vertiginoso filme que abraça o recado final, na voz de Elis Regina.

 

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postado em 12/04/2024 16:38 / atualizado em 12/04/2024 16:53
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