Crítica // Lupicínio Rodrigues: Confissões de um sofredor ★ ★ ★ ★
No documentário Lupicínio Rodrigues, há um entrevistado que traça a síntese: "em meia-dúzia de linhas, Lupicínio traz o que caberia num livro". Com entrevistas entre 1968 e 1974, dadas por Lupicínio, se descortina o universo do compositor perpetuado por díspares cantores, entre os quais Arrigo Barnabé, Marisa Monte, Ney Matogrosso e Adriana Calcanhoto. Na leva de artistas, Cazuza assume ter sido muito influenciado pelo colega capaz de contemplar na música, com quê brega, sentimentos dos mais baixos, como o da ingratidão. Movido a total indiferença em relação às obras, por alguns momentos, vendo a destreza de Francisco Alves, Carmem Miranda e Araci de Almeida no rol das gravações, Lupicínio mantinha distância (no fundo, nada desejada) de ser eternizado em disco. Se contentava de, habitante da Ilhota, "o alegre bairro das enchentes" de Porto Alegre, "sofrer demais" e captar "verdades" nos versos que criou.
Curioso é contatar, pelo documentário, a velocidade do navio a vapor, a postos para transportar, Brasil afora, a música de Lupicínio. Também é divertido, acompanhar os primeiros passos com músicas feitas no quartel, em que ele largava queixumes em torno dos constantes repetecos de charque com farinha, constantes no prato do rancho. Em primeira pessoa, Lupicínio conta do amor devastador por Inah, a mulata da maloca de Villa Brasil, e trata do auge da boemia, quando da criação da letra de Nervos de aço. Intérprete do blues brasileiro que detinha "mansidão contagiante", nas palavras de Gilberto Gil, que complementa — "ele trazia um romantismo eivado de dimensão trágica" —, o cantor conta das músicas de sua autoria que davam voltas pela Argentina e pelo Uruguai, até chegarem na popularidade carioca.
Caprichoso na estreia em longa, Alfredo Manevy trata de episódios inspirados como o vexame passado por Elza Soares, quando ainda desconhecia o mestre que lhe impulsionara a carreira; conta da anedota agridoce da trilha sonora do longa A dançarina loura e ainda das serestas de Lupicínio, ao lado de um calado Francisco Alves, antenado por guardar as inovadoras notas do colega de farra. Autor da letra e música do hino do Grêmio, Lupicínio tem contada a versão de adorar "ficar na geral" durante as partidas de futebol, em que dispensava a cadeira especial, de forma vitalícia, que lhe era ofertada. Também reveladores são os enredos por trás da criação de Maria Rosa, a rainha do clube, que lhe fascinava ("e, eu, pretinho", como diverte-se), e o conto hilário por traz da aquisição do moderno (carro) Hudson, movido à vingança. Arrebatadora mesmo é a versão de Gal Costa para Volta, em belíssimo quadro do documentário.