Crítica

Confira a crítica do novo Miyazaki, criador de fantasias, em dramas

Animação indicada ao Oscar, O menino e a garça novamente encanta, diante do belo trabalho de Hayao Miyazaki

Crítica// O menino e a garça ★ ★ ★ ★

Um cinema com interpretações de caminho múltiplos, alinhado às crenças do xintoísmo, que exalta a interligação de todos os componentes do universo, é constante na obra do diretor Hayao Miyazaki, nome definitivo nas animações japonesas. Há um momento em que a trama de O menino e a garça conclama à ação daqueles "que iluminam conhecimentos". Vindo de fora, com civilidade, mas ressentido pela morte da mãe, o menino Mahito terá uma jornada de descobertas, quando chega a uma propriedade rural do pai na qual será acolhida por Natsuko, tia dele (e, para seu espanto, nova esposa de seu pai).

O octogenário criador Miyazaki que sempre refutou fábulas ocidentalizadas, novamente não decepciona, no fantasioso longa-metragem pontuado por uma trilha sonora excepcional do consagrado compositor Joe Hisaishi. Com uma série de quinquilharias trazidas do ambiente urbano, Mahito conquista a legião de idosas serviçais (agitadas avós que representam as famosas batian — tão respeitadas no Oriente). Passado um estranhamento na nova escola, o jovem transitará entre vários mundos, praticamente com a abertura de um multiverso comandado pelo consagrado diretor de filmes como A viagem de Chihiro (2003).

Edificação de origem misteriosa, a torre ao lado da casa de campo, que tem origem bastante conectada aos parentes do menino, servirá como portal para a negociação interna do protagonista com a finitude e o luto.

Na composição de um ambiente mágico, o cineasta faz novo uso da dramaturgia do teatro nô, formulado por ideias de ciclos em que são contrapostas as dualidades entre o impuro (ke) e o conceito de pureza (hare). Além de contar com o imperfeito companheiro de viagem, a garça, Mahito terá ocasionais contatos com pelicanos, bizarros periquitos e brincará com hobby clássico (esquecidos hoje em dia) do arco e flecha. Novamente, Hayao se filia à alma japonesa, fazendo valer a preferência pelas "árvores ao invés do concreto".

O triplo sumiço de personagens gera a premissa de muita ação. Com presenças femininas ligadas ao sobrenatural, destacam-se Himi, donzela atrelada ao fogo, e Kiriko, que depende das águas para executar seus trabalhos. Na linha do antecessor Yasuo Otsuka (que também prestou serviços para o famoso estúdio Ghibli, dotado do talento de Miyazaki), Hayo apela para excessos que permeiam o clima realista. Junto com citação à Restauração Meiji, que gerou desenvolvimento econômico, em fins do século 19, o filme traz indícios da atividade do pai de Mahito, partidário da escalada armamentista.

Ausente das telas desde o longa Vidas ao vento (2013), o cinema de Miyazaki segue alertando para os perigos do desequilíbrio na Terra (há a deixa até de personagens manusearem um jogo do tipo Caiu, Perdeu, capaz de interferir no universo). Explorando personagens com funções convincentes, encantadoras e definidas, o mestre multiplica o talento numa animação que abraça a sensibilidade, ao tratar de traumas, traições e frestas para diferentes tempos e espaços. Nisto, salta a criatividade de invenções como os warawara (seres que esbanjam delicadeza) ou cenas como a da idosa que cabe no bolso de um personagem.

 

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