Crítica // A cor púrpura ##

Musical dilui epopeia de Celie, marcada por opressão em A cor púrpura

Sem nunca alcançar a qualidade do clássico eternizado por Spielberg, o novo A cor púrpura traz deslocada sonoridade e tom solar

Crítica // A cor púrpura ##

A cor púrpura é praticamente um emaranhado a se desenlear, quando se pensa na origem de tudo: o novo filme, a cargo do diretor Blitz Bazawule, parte de um musical criado na Broadway há quase 10 anos. Mas foi há 42 anos, época em que a autora e ativista Alice Walker venceu, como a primeira afro-americana, um prêmio Pulitzer, que o romance (em que o musical foi baseado) A cor púrpura teve esmagadora relevância, comparável apenas à celebração em cinema que, num primeiro feito, consagrou o realizador Steven Spielberg e a então principiante atriz Whoopie Goldberg.

Em 1985, naquela adaptação, Spielberg se viu arrasado, entretanto, passando pelo constrangimento de 11 indicações para o Oscar e nenhum prêmio nas mãos (situação equiparável apenas a Momento de decisão, drama de 1977). Todo o enredo do filme gira em torno da possível libertação da submissa Celie (Fantasia Barrino) que, durante décadas, fica à mercê de Mister (o versátil Colman Domingo, exercendo a personificação do senhorio). Uma violenta separação de Celie e da irmã dela, Nettie, vai resultar no que move muito do filme: o destino da truncada correspondência entre ambas. Junto com traições e perdões, o filme mostra relações incompletas e traz uma forçada cena de reconciliação, além de, vez por outra, descambar para deploráveis recursos dramatúrgicos.

Agora, o espectador se vê em frente a uma criação que tem produção de pesos pesados do entretenimento, com destaque para Walker, Spielberg, o músico Quincy Jones (autor da trilha do filme de 1985) e Oprah Winfrey (indicada ao Oscar, em meados dos anos de 1980, por papel na adaptação original). Sem as cores pastel e ocre, e o tom sombrio do primeiro filme, o cineasta Blitz Bazawule traz uma galeria de personagens (e atores) que se debatem num roteiro modulado de maneira nada coerente. Sofrimentos são atenuados e até apagados, as agressões e a tirania ficam estereotipadas e há brandas penalidades entre os opressores. Tudo é diluído, e o musical parece deformado a fim de se tornar mais palatável para o público. Como no fiasco de outro musical (O rei do show), a montagem de Jon Poll, novamente, se mostra ineficiente.

Roteirista inexpressivo, Marcus Gardley remexe em escritos de Marsha Norman (de Noite de desamor e Em terapia), a autora do libreto (apoiado, claro, em Alice Walker). Entre os talentos técnicos envolvidos, o diretor de fotografia dinamarquês Dan Laustsen (O beco do pesadelo e A forma da água) ambienta tudo com imagens coloridas e bem inspiradas. Há um único número musical (com o ápice da letra de I´m here), em que Fantasia Barrino voa. Daí, quem roubou a cena foi a indicada ao Oscar Danielle Brooks que, com a solar Sofia, dá as cartas e ainda abraça uma trajetória revoltante no curso da trama. Taraji P. Henson, na pele de sensual Shug Avery (papel clássico e sexy de Margaret Avery), tem lá seu momento quando entoa a inesquecível Miss Celie´s blues (Sister). Ainda no quesito das músicas, vale ressaltar o uso dos blues nas vozes de Ethel Waters (a segunda atriz negra pinçada pelo Oscar, no retrato de uma avó, em Pinky, de 1949) e os vocais de Ma Rainey (feita no cinema por Viola Davis) e Louis Armstrong.

O filme conta com uma belíssima arte usada nos créditos finais e uma envolvente cena conjunta de atrizes, quando trazem a revolta liderada em ocasião de pretensa confraternização. Quem faz figuração de luxo é Louis Gosset Jr., no papel do avô de Harpo, personagem vivido sem destaque por Corey Hawkins (Infiltrado na Klan). Halle Bailey não tem muito a contribuir no papel da jovem Nettie e, menos ainda, H.E.R., à frente da quase invisível Squeak.

 

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