Crítica

Confira a crítica de Fogo-fátuo, filme que traz atrevidas coreografias

Fogo-fátuo investe em altas cargas homoafetivas, ao tratar de consciência de classe

Crítica // Fogo-fátuo ###

Ricardo Daehn

Nada que seja chocante, mas existe um teste de limites na liberdade do cinema do português João Pedro Rodrigues. Além de dialogar com uma linha de cinema cantado, com narrativa alternativa à la Marco Dutra e Juliana Rojas (de fitas como Sinfonia da necrópole e As boas maneiras), em que canções expressam muitos conceitos do longa, Fogo-fátuo aposta em um registro de sexo homoerótico, de forte pontuação.

Exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, o longa começa com uma pegada lacunar e algo futurista: na trama, Alfredo (Joel Branco, na versão envelhecida do personagem) agoniza, abaixo de um quadro que saúda uma dinastia negra, retratada em momento de felicidade. Alfredo tem ascendência num regime monárquico, mas foge aos dele, buscando contato mais próximo com o mundo real. No passado (interpretado por Mauro da Costa), Alfredo, ainda candidato a príncipe regente, se preocupa com questões minimizadas pelos familiares, como aquecimento global. Há algo de contemporâneo, daí tudo se passar em 2069. Um desejo íntimo de Alfredo é o de se tornar bombeiro.

Estudante de história da arte, além de refinado, Alfredo não contava com a temperatura do encontro com o súdito Afonso (André Cabral), justo um bombeiro que se destaca na trama de erotismo forte. Autor de fotogramas pesados como os de O fantasma (2000) — sobre os desejos pulsantes de um catador de lixo — e de Morrer como um homem (de 2009, em torno de uma trans que repudia o passado masculino), João Pedro Rodrigues segue no processo de pesquisador e adepto da quebra de tradições, entre as quais a de uma nova roupagem empregada em releitura de provocativos fados.

Com direção de fotografia a cargo de Rui Poças, Fogo-fátuo focaliza, em meio às chamas, uma paixão inflamável. Na telona, há de queimadas a leves referências ao cinema de Luis Buñuel. Mas, igualmente, brota a ousadia de um autor que vai fundo na exploração de fantasias como a dos calendários anuais de bombeiros desnudos e que, em grupo, ridicularizam a soberania do protagonista, numa cena em vestiário.