Cinema

'Corpolítica' retrata falta de representatividade LGBTQIAP na política

Vencedor do Festival Queer (Lisboa) e melhor documentário do Festival do Rio, documentário 'Cosmopolítica' se aprofunda na falta de representatividade LGBTQIAP na política nacional

Tratados, pela atriz Renata Carvalho, como "os inimigos" que unem, no "ódio", católicos e evangélicos, corpos LGBTQIAP protagonizam Corpolítica, filme vencedor do Festival Queer (Lisboa), do MixBrasil e ainda destacado como melhor documentário no Festival do Rio. Curiosa, entre muitas presenças, é a infame presença do, na época, ainda nem derrotado ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele comparece para espezinhar minorias e, em imagem de arquivo, elogiar a apatia resignada do então, (a)político, estilista Clodovil Hernandes.

Num roteiro de diversidade, cercando seis candidatos a cargos públicos, o diretor Pedro Henrique França não esquece, na narrativa, de disparates como uma comissão de Direitos Humanos e Minorias comandada pelo deputado (e pastor/empresário) Marco Feliciano, que tem a "homofobia e o racismo" ressaltados pelo professor e jornalista Jean Wyllys. Depurar questionamentos e relativizar status quo é das mais vistosas qualidades de Corpolítica. Nisso, há uma cena do encontro Slam das Minas, em que alguém dispara: "Quantos pretos tu já chamou de vereador?", ao que, Rainha do Verso complementa que, seja direita ou esquerda, essas mãos são as que seguram o chicote.

"Brigar e atravessar", um norte para a ativista Mel, seria estratégia para o alcance da representatividade. Não tratar "política com repulsa" traz o colorido reclamado na luta "pelas paradas" da candidata a vereadora, em 2020, Andréa Bak, uma poeta atenta ao paralelo entre casa grande, senzala, Leblon e Vidigal. Primeiro gay assumido da Câmara, Fernando Holyday comparece em cena para se orgulhar de "não levantar bandeira" política, numa contribuição social vista como empecilho para o roteiro do engajado filme. Sobra, também, nesse viés, para Thammy Miranda (vereador, por São Paulo), menos enfático do que Holyday, que distende a ideologia do "perigo" da esquerda.

O longa acompanha o corpo a corpo com o eleitorado, mesmo com a pandemia em curso. Avanços da comunidade LGBTQIA estão pontuados pela projeção de Monica Benicio que, no rastro do assassinato da mulher (Marielle Franco), se vocaciona à política e reclama o "direito (coletivo) à cidade" em que se concentram as ações de solidariedade que a movem. Na luta, cita a militância setentista de Zuzu Angel, que dizia assumir "a legitimidade", num processo em que "a coragem" caberia mesmo ao filho Stuart (assassinado pelo aparato repressor da ditadura militar).

Entre os múltiplos discursos costurados pelo filme, o candidato De Lucca enfatiza as políticas públicas que garantam o simples direito à vida. A deputada federal trans Erika Hilton deixa transparecer o espanto com a "política de retirada de direitos", enquanto o psicanalista e assessor legislativo Eliseu Neto tem reiterada a imagem aguerrida e astuta, mesmo sob ataque de cobras criadas no reino dos privilégios. Desencorajar (ocos) traços radicais está num dos pontos altos de alguns discursos do documentário que registra uma militância branda e articulada.

Redefinições de postura social e inquietações pulsam na fita em que eleitores ressignificam a importância de sua cidadania. Corpolítica, por fim, em momento nenhum, adere à bizarra tese dos corpos LGBTQIA como "corpos sem alma ou endiabrados" (numa reprodução de discurso condenatório feito por Renata Carvalho).

Com denúncia de ameaças anônimas (via e-mail) aos "sodomitas" cujo pecado deveria ser castigado com "espada", Corpolítica, felizmente, revela o cenário contrário, no dia da posse de alguns entrevistados de "cara periférica": renovam-se as vozes de enfrentamento, vozes insubordinadas e que expressam desejos comunitários, longe da esfera da vida ganha dos velhos caciques que ainda disputam os palitos putrefatos da mordomia.  

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