Jornal Correio Braziliense

Cinema

Toda a alegria de Jair Rodrigues explode na tela, em documentário

Vida e obra de um homem em permanente estado de felicidade integram a narrativa do documentário Jair Rodrigues: Deixa que digam

Crítica // Jair Rodrigues: Deixa que digam ###

Na crônica de "um Brasil rural que estava desmoronando", como observa o pesquisador de Cultura Popular Brasileira Bruno Baronetti, Jair Rodrigues (morto em 2014) assentou um de seus grandes sucessos: Disparada, que no documentário que chega aos cinemas, é destacada por Jair como "a música da minha vida". Ex-alfaiate, ex-engraxate e ex-roceiro, Jair , depois de estabelecido, apostava num pouco de tudo, mesclando congado, folia de reis e moçambiques, enveredando pelo que o pesquisador Salloma Salomão chama de  "samba branqueado" — a bossa nova. As expressões culturais povoam o LP Festa para um rei negro, de 1971.

Militante "nas entrelinhas", na visão de Rappin'Hood, Jair é contestado, em parte, como "apolítico", por não investir no que ele chamava de "desgraceira": a política. Mas, lá está a reflexão do longa dirigido por Rubens Rewald para rever o panorama. Em período de luta civil dos africanos em Angola se apresentou durante o processo de independência. Zuza Homem de Mello, historiador musical, dá o veredito de sempre notar Jair cantando meio de lado, a exemplo de "um pastor em pregação". No filme, outro depoimento interessante vem da filha de Jair, Luciana Mello, que conta ter visto no pai, um "cara superior" frente às questões "mundanas" pelas quais passava sem rancor — questões como as do racismo. Nisso, o radialista Moisés da Rocha conta que à época era praxe o silenciamento dos artistas negros, num reflexo do período, e lá estava Jair cantando "as mãos do nêgo tá que é calo só", trecho de Terra seca.

Até a chegada na criação de 500 anos de folia, produzido pelo filho Jair Oliveira (apoiado na "pertinência e descontração" da carreira paterna) e que competiu no Grammy Latino, Jair tem todas as fases da vida repassadas. Num consenso, a lida pessoal não trazia barreiras, por poucos terem visto o cantor triste, por exemplo. A capacidade de se transformar, se reinventar igualmente permeia o mestre dos ritmos diferenciados, saído de um coral de igreja. A fase da dupla de música sertaneja, que uniu os irmãos Jairo e Jair, também é potente. Théo de Barros, coautor de Disparada, relembra do colega que, desde o ensaio, conquistou todo mundo. Realidade para o engenho de algodão, milho e cana, em que dividiu as jornadas de trabalho com padrasto e mãe, as festas, ou melhor, os chamados bailes na tuia trouxeram para Jair o gosto pela moda de viola, e o apreço por sanfoneiros, violeiros e zabumbeiros.

A construção da carreira, inclusive como crooner, é relatada pelo irmão de Jair, Jairo. Entre imagens que impressionam de festejos no Farol da Barra (Salvador), o homem que frequentava Cacique de Ramos e abria portas para talentos como o de Roberta Miranda (com quem projetou Sua majestade o sabiá) e conheceu o ostracismo, mesmo depois do sucesso internacional, ao lado de Os Originais do Samba, ainda ganha um belo raio-X de alto-astral. No filme, o apresentador Raul Gil conta da mesada sempre condicionada ao bel-prazer da esposa Claudine, e o cantor de Gotas de veneno, Arrastão e O conde surpreende, ao contar do apelido de Peru, quando do alistamento, pelo "jeito que marchava", e ainda tira riso ao ter revelada a admiração pelo humorista Chaves, que o fazia "parar tudo" no endosso de audiência.