Jornal Correio Braziliense

Crítica

Com seis indicações ao Oscar, Tár estreia, sob o brilho de Cate Blanchett

O longa de Todd Field examina imperfeições e viradas no cotidiano de uma magistral maestrina de orquestra germânica

Passagens, com registros de aculturação, pelo Peru e pelas Filipinas, trazem exemplos de dedicação aos estudos da personagem central de Tár, a maestrina e compositora Lydia Tár (Cate Blanchett). Na oitava indicação ao Oscar de melhor atriz, desfilando uma técnica corporal impressionante, somada à capacidade de condensar, num mero olhar, uma série de conflitos internos, Blanchett entrega um desempenho equiparado ao da poderosa rainha Elizabeth, com a qual despontou em fins dos anos de 1990. Repleta de nuances e protagonizando presença magnética, Blanchett capitaliza todas as cenas do longa do diretor Todd Field, sempre atento aos bastidores camuflados de personagens vistos em longas como Pecados íntimos e Entre quatro paredes.

Valorizado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (que elege vencedores do Oscar), com seis indicações à estatueta dourada, Tár imprime o pé na loucura dos artistas da música clássica que o cinema tanto gosta, entre os quais a violoncelista Jacqueline du Pré (retratada em Hilary e Jackie), a devassa personagem de Isabelle Huppert de A professora de piano ou ainda o compulsivo pianista David Helfgott, de Shine — Brilhante. Se assumindo uma "lésbica típica", Lydia Tár, para além do amplo reconhecimento, consegue conciliar trabalho árduo com a vida privada, dividida com a esposa, e spalla, Sharon (Nina Hoss) e a filha Petra. Numa classe, junto a alunos atentos, Tár assume que prefere distinguir com "amor" (em lugar da tragédia) a condução de sua musicalidade.

Assessorada por Francesa (a ótima Noémie Merlant, de Retrato de uma jovem em chamas), progressivamente, Tár se vê metida num enredo à la A malvada (1950), na trama que avoluma traições, distrações de foco, vaidade, bullying infantil, pesadelos e primeiros sinais de precoce velhice. Por momentos, com tom documental, o longa parece um aterrador título de Michael Haneke. Meticulosa, organizada e, acima de tudo, dona de invejável precisão, Tár parece habitar outro plano. Há aparente pedra no meio do caminho da classuda diretora de uma orquestra alemã: a Quinta Sinfonia de Gustav Mahler.

Um verdadeiro metrônomo humano, Tár desafia o tempo e molda também os alunos: numa das grandes cenas do filme, ela explora temas de critério e avaliação relacionados à má vontade de um estudante com as composições de brancos e privilegiados, demonstrando a falta de argumentos dele frente à identidade de seculares compositores. Julgamento não cabe a ninguém é o que ressalta, nas entrelinhas. No filme, que tem ótima edição (a cargo de Monika Willi), há espaço até para celebração da feminista Clara Zetkin.

A jornada de alegre regente de Tár atravessa ordens conceituais e capta registros do poder de transformação da música — até o momento em que tem a excelência questionada. Uma carga de dubiedade bate à porta da regente que despreza críticas e faz, do púlpito, pedestal. Descontroles e presságios se instalam, no filme com roteiro sofisticado (indicado ao Oscar) e que desequilibra Tár, a partir de manipulações e contaminações (há um asseamento enervante da protagonista). Tudo abala a perfeccionista e seletiva personagem central do filme, candidato ainda a prêmios da Academia de melhor filme e direção.