Crítica

Uma relação de amor e canibalismo está revelada em Até os ossos

Filme de canibais põe em xeque a empatia junto ao público, em produção que conta com o astro Timothée Chalamet

Crítica // Até os ossos ####

Nascido de adaptação de livro juvenil de Camille DeAngelis, Até os ossos joga luz sobre os talentos de Timothée Chalamet e Taylor Russell, casal que, em nada se confunde com os personagens vampirescos de Crepúsculo. Enquanto Bella e Edward pareciam sem norte, numa espécie de corre-corre sem sentido, naquela adaptação de livro de Stephenie Meyer, há completo interesse pelos jovens personagens Maren (Russell) e Lee (Chalamet), no filme atual. Na narrativa, está a obsessão de ambos por carne humana.

O meio rural desbastado no road-movie assinado por Luca Guadagnino (evocado por Me chame pelo seu nome e vencedor do Leão de Prata de melhor direção, em Veneza, por Até os ossos) e a violência administrada pela trama lembram em muito Terra de ninguém, estrelado há 50 anos, por Sissy Spacek e Martin Sheen. O diretor de fotografia Arseni Khachaturan também parece inspirado por aquele clássico de Terrence Malick. Algo está desregulado em Marien, e o espectador nota isso, quando, numa brincadeira de pinturas de unhas, ela praticamente arranca o dedo de uma conhecida, a dentadas.

Com elevado senso de independência e autonomia, Maren, numa jornada de autoconhecimento, depois de abandonada pelo pai, segue pistas de uma espécie de guru, Sully (Mark Rylance, excelente, com olhar insano), que oficializa a entrada dela num mundo anteriormente clandestino: aos poucos, ela tateia alguma lógica na rede de instintos, de um prazer privado, iniciado nas mastigadas que feriram uma babá. Entre bizarrices, ela aprende a capacidade do faro diferenciado e segue o conselho de "nunca devorar um devorador", num alerta dado por Sully. Algumas coordenadas de vida ainda são deixadas pelo pai, em mensagens de fita K7.

Na jornada nutrida por gostos azedos e metálicos, Maren tem a necessidade de "ser alimentada" e determinada a explorar as origens de seus desvios, parte em busca das raízes familiares. Estados como Minnesota, Ohio e Kentucky entram na rota de descobertas da moça que traceja ainda um enredo de amor livre de fórmulas. Reclamando amor, Lee, outro canibal junkie, oculta a monstruosidade, na humanizada interpretação de Chalamet (cada vez mais, um candidato a James Dean modernoso).

Alternando momentos sublimes, em parque de diversões, e passagens convencionais de romance, o diretor Luca Guadagnino dosa cenas agonizantes de descontrole e adrenalina, com vontade de compreensão. Ainda que derrape em clichês, como o castigo reservado a um personagem gay, o filme aposta numa trama sem julgamento, apoiada em polêmica empatia. Também é muito acertada a opção do filme por coadjuvantes fundamentais, entre os quais Brad e Jake, na pele de David Gordon Green (ator ocasional e diretor da nova leva da saga Halloween) e Michael Stuhlbarg. Não é por acaso que há peso para a aparição de um exemplar de Dublinenses, escrito por James Joyce (no início do século 20). Naquela obra pesava o exame das bases morais da nação irlandesa, tentativas de compreensão e epifania, e a demarcação de uma nova vida para a personagem central — muito do que se pretende enfatizar, numa realidade norte-americana, em Até os ossos.