Crítica // Clarice Lispector: A descoberta do mundo ####
Entre as dores do ato de escrever e surpresas (tão bem descritas em crônica na qual se vê "delicada e forte" e louva a existência), a escritora Clarice Lispector, no documentário Clarice Lispector: A descoberta do mundo (em cartaz na cidade), deixa transparecer as "alegrias gratuitas" de viver. Tendo por cicerones os escritores Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant´Anna, factoides da vida de Lispector atravessam a telona, encadeados por momentos de fragilidades represadas, descrições de limitações financeiras, culpas e travessias entre "loucura e sabedoria", como descreve um dos entrevistados.
Pouco prática (num mundo de cultivo da "angústia e da indecisão", como detecta Sara Escobar), pensativa e rebelde, Clarice, até mesmo averiguada por si própria (como em reveladora entrevista para o programa, de 1976, da TVE, Os mágicos), segue envolta por mistério. Premiada, tardiamente, pelo conjunto da obra, em Brasília, Clarice tem descrita outra passagem em que seu talento tangenciou o poder, num restritivo (e repulsivo) encontro com Jânio Quadros. A estirpe e intimidade dos entrevistados com a renomada autora ) traz muita riqueza para o documentário assinado por Taciana Oliveira.
A beleza dos gestos de Clarice é apontada por Colasanti; declarações de Tristão de Ataíde sobre a precária situação financeira de Clarice é desautorizada por Nélida Piñon; enquanto Luiz Carlos Lacerda detalha algo do amor de Clarice por Lucio Cardoso e Alberto Dines conta das demissões e perrengues da autora no cotidiano de redações de jornais. Curioso é saber, pela boca de Clarice, que tinha "infelicidade", ao redigir suas crônicas. Antiga repórter do Diário de Notícias, Rosa Cass comparece em cena para tratar da "comunicação indireta" mantida com a autora de A hora da estrela. E Lêdo Ivo trata de parte da recusa inicial da escritora, que passou despercebida pelo olheiro de José Olympio, Álvaro Lins. Mãe, "plenamente", como se assume, Clarice é celebrada pelo filho Paulo Gurgel Valente, pelo valor das cartas "pessoais, autobiográficas e poéticas" que ela grafou.
Entre confissões do processo de montagem de seus livros (em que chega ao requinte de diferenciar novelas pretendidas, em contraponto a contos e romances), Clarice ganha um instigante retrato, em cinema, à sua altura. Colabora imensamente a participação da amiga (e artista plástica) Maria Bonomi, pela ótica de que a autora "graduou a mulher, dentro da arte". Bonomi traz leveza ao pontuar das paixões reveladas via obra escrita, ela trata do papel consolador de Clarice, à época da ditadura e ainda explica da alegria de Clarice ter visto "um vestido (dela) indo à Casa Branca (por meio de empréstimo a Bonomi)". Irônica sobre si mesma, depois de gravemente ferida em incêndio, Clarice era capaz de rir de uma alcunha algo maldosa, ao ser chamada de "tia churrasco". Nascida para "amar os outros", Clarice se assume inquieta e inapta a "usar amor", por vezes vertido em "farpas". O documentário de Taciana Oliveira celebra a mansidão e a suavidade de tais farpas.
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