Crítica // Fé & fúria ****
"Haverá reino contra reino" talvez seja das citações mais emblemáticas do documentário Fé & fúria, assinado por Marcos Pimentel, diretor formado na Alemanha e respeitado em circuitos especializados como a escola cubana San Antonio de los Baños.
Com modelos de pregação religiosa aos moldes do neoliberalismo e ladeado pelos riscos da implantação de uma teocracia em um Estado laico como o Brasil, o cineasta mexe com a expressão das trevas, no longa que denuncia retrocessos, expondo depredação e outros crimes de intolerância "em nome de Deus". Acima do fervor religioso, pesam o registro de vandalismo que assola terreiros de candomblé e umbanda, em centros de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Curiosamente, o filme começou a ser rodado em 2016, com assustadora contemporaneidade.
Camadas da polícia, capazes de oprimir crenças de matrizes africanas, agentes intimidadores de milícias e a politização de religiões, a partir de poderio econômico estão destacado em Fé & fúria. Para além disso, o filme esboça a difusão da fé, entre favelas, guetos e periferias. "Deus nos contempla, sempre guerreando", aponta uma das entrevistadas. Pastores, cristãos, evangélicos e filhos de Santos apostam em expressões acuadas e também na enumeração de artifícios para aumento de rebanho, dentre outros movimentos de massa.
Entram na fita, partidários do "exército de Deus" e também praticantes de fé que respeitam o processo de expansão de diversidades na religião. Há quem denuncie "coisas não naturais" durante cultos e aqueles que preveem desgraças diante da cisão territorial ocasionada por intolerância e preconceitos. Como outros dados definidores de afirmação de negritude, matrizes africanas são perseguidas, alinhadas a sérios retrocessos.
Declarações estapafúrdias com "ataque aos pretos" (como sublinha um dos entrevistados) desenham o clima pesado na discussão em que há disputa declarada, em contraponto à antiga harmonia. Liberdades são abertamente cerceadas, com descasos nos quais o Estado se mostra muito mais do que conivente. Ataques a jovens como Kayllane — durante a "feitura de santo" dela —, vítima de pedrada no meio da rua, ilustram atrocidades.
Estruturas precárias, impulsos criminosos e, outros, na linha da felicidade (a cena da dança do passinho empregado em louvor se prova arrebatadora) fortalecem o discurso do filme que denuncia expurgos religiosos, ao mesmo tempo em que enaltece o culto à persistência e às convicções.
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