
O intercâmbio cultural entre Nova York e Minas Gerais voltou a se manifestar com força no mais recente álbum do multi-instrumentista americano Brian Jackson. Intitulado Of Corners and Bridges, o disco lançado pelo Selo Sesc apresenta releituras sensíveis e sofisticadas da obra de Milton Nascimento — o eterno Bituca — por meio das cordas, sopros e atmosferas criadas por Jackson intercaladas com novas camadas e texturas. Em diálogo com instrumentistas brasileiros e estrangeiros, o próprio Milton participa do projeto, emprestando sua presença simbólica e vocal para reafirmar a atemporalidade de sua música.
Mais do que um tributo, o álbum é uma celebração da influência profunda que Milton Nascimento exerceu sobre gerações de músicos mundo afora. Admirador fiel desde os anos 1970, Jackson mergulha no lirismo do repertório de Bituca com reverência e liberdade criativa, transbordando admiração em cada arranjo. Em entrevista ao Correio, o nova-iorquino revela como essa conexão com a cultura brasileira — em especial com a musicalidade do mineiro— moldou sua trajetória artística e o inspirou a criar pontes sonoras entre dois mundos que, apesar da distância geográfica, vibram em frequências muito semelhantes.
Milton já inspirou diversos artistas internacionais, mais recentemente a cantora Esperanza Spalding, com quem colaborou em seu último álbum. Na sua visão, como Milton Nascimento é percebido pela comunidade musical internacional? Quando foi seu primeiro contato com a obra dele?
Ouço as composições de Milton desde muito jovem. Quis começar a compor por volta dos 14 anos. Ouvia tudo o que podia, e as mudanças de acordes complexas, mas belas, da música brasileira falavam comigo, mesmo que eu não entendesse do que tratavam as letras até bem mais tarde. Só fui perceber que muitas das músicas que me inspiravam eram de Milton muito tempo depois. Tudo se conectou quando fui formalmente apresentado a Milton por Wayne Shorter, por meio de seu lendário álbum Native Dancer. Quando entendi isso, percebi que a música de Milton já estava penetrando meu subconsciente muito antes de eu saber quem ele era. Mas muita coisa da obra de Milton é assim, não é? Ela te alcança em vários níveis de consciência, como se fosse um efeito de liberação.
Quais canções do repertório de Bituca mais te comovem?
São muitas — comece por todas as músicas que gravamos no Of Corners and Bridges. Cada uma foi escolhida por sua força e beleza. Mas mesmo sem música, Ponta de Areia é um dos poemas mais comoventes que conheço — e é sempre cantado, mas, por ser tão belo como poesia, pedi ao Rodrigo Brandão que o apresentasse como um texto falado. Por outro lado, há muitas canções que amo apenas pelas melodias, mesmo que as letras sejam igualmente poderosas. Uma música como Milagre dos Peixes me vem à mente — ela tem tudo!
Quais foram os maiores ganhos e os maiores desafios desse projeto?
Como não cresci na cultura brasileira, fiquei muito inseguro quanto a captar corretamente o contexto das músicas. Não sabia se os músicos brasileiros “originais” com quem estava trabalhando se conectariam com isso ou se pareceria apenas uma tradução pobre de algo que eu claramente não compreendia. Mas, depois que apresentei a música para eles, eles a amaram imediatamente e se entregaram de coração. Durante uma pausa, Nivaldo Ornelas me disse: “Estamos acostumados a ouvir essa música pela perspectiva de outros brasileiros que a tocaram e arranjaram, mas dessa vez ela veio de alguém que talvez não entenda todo o contexto, mas compartilha o suficiente da cultura para tornar sua interpretação interessante. No fim das contas, ouvimos a música de um jeito novo, como se fosse algo completamente fresco.”
Como multi-instrumentista, qual você considera ser a maior qualidade técnica de Bituca?
A capacidade de Milton de mudar de registros e tons, cantar em um falsete melancólico ou em um tenor desafiador, é inspiradora. Ele consegue expressar exatamente o que quer ao piano, no violão, com a voz ou na composição. Ainda assim, sua maior habilidade técnica não é exatamente uma habilidade técnica — é sua capacidade de nos fazer sentir. E essa habilidade não pode ser ensinada ou aprendida. Não existe técnica que te ensine isso; ou você tem, ou não tem.
Como foi sua primeira interação com ele? Como foi esse encontro?
Nossa troca foi breve. Milton sempre foi uma figura maior que a vida para mim, como é para tantos de nós. Ele me cumprimentou como se já nos conhecêssemos, apenas não nos víssemos há muito tempo. Olhamos nos olhos um do outro e nos reconhecemos. Não consegui conter a emoção — nunca imaginei que um dia o conheceria. E, no entanto, lá estava ele, me recebendo com generosidade para passar alguns momentos ao seu lado. Foi um dos momentos mais memoráveis da minha vida.
Muitos na comunidade brasileira sentiram que Milton foi desrespeitado pelo Grammy por não ter sido acomodado ao lado de Esperanza Spalding em uma das mesas principais. Como você vê essa situação?
É terrível, mas uma grande parte da cultura dos Estados Unidos é cega para a cultura. Um país onde nasceu uma das músicas mais influentes da história da humanidade é, em grande medida, inconsciente da grandeza da sua própria contribuição. Então, podemos esperar ainda menos consciência sobre as grandes contribuições de outros países. Uma coisa que notei há muito tempo é como, no Brasil — e em muitos outros países também, mas particularmente no Brasil —, os músicos são heróis, amados pelo povo e reconhecidos como os curadores que são. Essa capacidade de cura pode fortalecer muito aqueles que estão sempre lutando para serem melhores, fazerem melhor e lutarem por justiça e humanidade. Então, embora eu tenha ficado indignado com o desrespeito a esse grande músico — alguém que artisticamente se impõe a muitos dos que foram homenageados naquela noite —, infelizmente, não fiquei surpreso. Mas nós, que sabemos quem é Bituca, somos os verdadeiramente abençoados.
*Estagiário sob a supervisão de Nahima Maciel