Logo Correio Braziliense
Crítica

Leia crítica do filme sobre uma suburbana contra o tráfico: é Vitória

Filme protagonizado por Fernanda Montenegro conta a história de uma mulher comum que enfrenta o crime organizado no Rio de Janeiro

Crítica // Vitória ★★★

"Dá nada, não" é uma das respostas jogadas ao vento, em um batalhão carioca, quando uma grave denúncia sobre crimes é feita pela idosa Nina (Fernanda Montenegro), bem antes de a "chapa ficar quente" em frente à ladeira da Misericórdia, na Zona Sul, em que mora. Numa cena discreta, o filme de Andrucha Waddington mostra a relevância da mente de Joana da Paz, a personagem em que o roteiro se baseou, capaz de remodelar parte da violência do tráfico: num testemunho inspirado, Nina (com a discrição de Montenegro) trata de seu testamento na passagem do tempo — ela já era habitante quando o morro à frente de sua janela era "uma floresta". O filme se passa em 2005 e vem baseado em dados reais.

Os tempos são outros, e "o dono do morro" agora "conhece" a cidadã de mais de 90 anos, protagonista do filme que tem roteiro de Paula Fiuza. Nina foi escondida pela vida: não recebe nada de correspondência e menos ainda mensagens na secretária eletrônica. Com os nervos à flor da pele, resiste aos tiroteios como pode, ora dentro da banheira, ora atirada ao chão. Para além das noites sem dormir, ela comanda a vida, sozinha, no vazio da existência e à reboque de sua rabugice; exigente, não dá refresco a sermões e a atitudes impulsivas, como a da bolsada no carro que a ameaça. Pelas brechas das persianas, ela entrevê a realidade dura ("gravada e sacramentada", em capturas de vídeo que registra como prova). Em lugar da própria segurança, Nina zela mais pela sua integridade de cidadã.

Nas pequenas lições, declara guerra à opressão e à rispidez de terceiros. Em certa medida, o longa nacional se aproxima da linguagem de Sebastián Lélio, quando ele vasculhou a vida de Gloria Bell (na versão com Julianne Moore). Descrita no livro Dona Vitória Joana da Paz (do repórter policial Fábio Gusmão, no filme, interpretado por Alan Rocha), a personagem central ameaça ir a bingo, mas recua, dada a ilegalidade e, entre uma ação de X-9 (como é descrita) e outra, toma parte de uma matinê dançante, com a vizinha Bibiana (Linn da Quebrada, bastante expressiva).

Num filme com andamento muito convencional são as atitudes atípicas e exasperadas de Vitória que dão sustento ao enredo. Nisso, Fernanda é comedida e coerente. Num dos momentos de humor (enxertado no roteiro), a massoterapeuta coloca "meliante para andar", depois de um cerco com sete bandidos. A quintessência da democracia, Nina brada que "a rua é de todo mundo", defende e se afeiçoa por um menino em situação de vulnerabilidade e, entre rompantes, quando é pega, espionando da janela, por binóculos, revida, numa cusparada de ódio contra abusos e violências. "O tráfico não trabalha sozinho", como é dito no filme, e Dona Nina muito bem sabe disso.

 

Mais Lidas