
O ator Marcos Pigossi encara o filme Maré alta como um grito de liberdade. Com estreia marcada para esta semana, o longa tem direção de Marco Calvani e um tom extremamente pessoal, embora o ator garanta que não é uma história autobiográfica. Pigossi trocou o Brasil por Los Angeles em 2018 e, desde então, vive nos Estados Unidos. O personagem Lourenço também é imigrante, mas em condições bem mais precárias, e enfrenta a dificuldade de se assumir gay perante a família, que permaneceu no Brasil.
Pigossi, conhecido pelos papéis desempenhados em novelas como Gabriela (2012), Fina estampa (2011), Sangue bom (2013) e Ti ti ti (2010), todas da TV Globo, decidiu não renovar o contrato com a emissora e, em 2018, assinou com a Netflix. A atuação em séries como a australiana Tidelands e a hispânica Alto mar projetaram o nome do ator no mercado internacional, o que acabou proporcionando papeis como o de Dr. Edison Cardoso na série Ven V, da Prime Video, um spinoff de The boys.
Maré alta é a primeira produção do ator dedicada ao universo LGBTQIA , tem produção mais independente e faz parte de um compromisso do próprio Pigossi, que já contou, em entrevistas, sobre a dificuldade em se assumir gay por causa de conflitos com o pai e pelo medo de perder papeis na carreira televisiva. "Esse filme faz parte de uma transformação artística e pessoal. A partir do momento que eu saí do Brasil para buscar novos desafios, por várias razões artísticas, eu precisava me expandir, me reconhecer, crescer e viver novas experiências artisticamente, mas também pessoalmente", conta, em entrevista ao Correio. "Eu precisava me entender como um homem gay no mundo, precisei desse movimento de afastar, de olhar de uma outra perspectiva, de entender que era uma coisa totalmente natural e simples. O Lourenço faz parte disso, mas ele é um grito de liberdade, também porque estamos vivendo um momento político muito violento nos Estados Unidos agora."
Lourenço é um imigrante que foi para os Estados Unidos atrás do namorado, mas acaba abandonado por ele. Para a mãe, ele diz que vai cursar um mestrado na Universidade de Harvard. Passa a trabalhar em bicos em uma cidade turística à beira mar e encontra Maurice, com quem tem um relacionamento rápido. Lourenço está emocionalmente destruído e fragilizado. Americano e negro, Maurice, vivido por James Bland, também não se sente totalmente à vontade e deixa claro o quanto o racismo impacta o cotidiano ao reprarar, em um restaurante, ser o único com a pele escura.
O visto prestes a expirar e a recusa em voltar para o Brasil encurralam o personagem em situações de vulnerabilidade comoventes, mas o encontro com Maurice, mesmo que não resulte em laços mais perenes, aponta caminhos de autoconhecimento para Lourenço. "Tem muita semelhança entre Lourenço e Pigossi que são interessantes", avalia o ator. "Claro, são situações pessoais completamente diferentes, eu venho de um lugar privilegiado, de profissional, com papeis, documentação, mas são sensações que, quando você imigra, quando você muda de país, são muito semelhantes: a solidão, a sensação de vulnerabilidade, de estar em um lugar no qual você não conhece ninguém, de se entender numa outra cultura, numa outra língua."
Para o diretor Marco Calvani, é cada vez mais difícil estar confortável em situações como a de Lourenço. "Ele é uma pessoa que está desesperadamente tentando encontrar um lugar para chamar de casa, mas, por diferentes razões, não se sente confortável no lugar em que está e em lugar nenhum", explica Calvani, que encara o filme para além do político. "Testemunhei muitas agressões, não apenas no nível micro, mas grandes agressões sofridas por meus amigos afroamericanos, que, constantemente, precisam enfrentar, no dia a dia nos Estados Unidos. Então, eu queria usar meu trabalho para dar voz a pessoas que não têm voz suficiente. E queria fazer isso por meio da linguagem do amor e não apenas com uma mensagem política", explica.
Quando Pigossi conheceu o cineasta italiano Marco Calvani, com quem hoje é casado, o roteiro de Maré alta estava 70% concluído. Os dois conversaram sobre a história, e Pigossi queria muito embarcar em um projeto que desse destaque ao universo LGBTQIA . Ele acabava de produzir o documentário Corpolítica, de Pedro Henrique França, sobre a lacuna na representatividade das pessoas LBGTQUIA no cenário político brasileiro. "Eu falei para ele: 'Tenho muita vontade de falar sobre isso como ator. Eu já estava no processo de produzir o Corpolítica, de dar declarações públicas sobre isso, mas eu queria muito explorar isso como ator", conta. O filme será exibido no Festival de Cinema LGBTQIA de Londres e concorre ao GLAAD Awards, realizado em Los Angeles e considerado o Oscar Queer, na categoria de melhor filme.
Pigossi encara Maré alta, que contou com a participação de Marisa Tomei no elenco, como um filme que celebra a intimidade, as conexões humanas, a paciência e a empatia, mas também como um filme sobre pertencimento. Lourenço vem de uma cidade pequena, de uma família conservadora, que não soube aceitá-lo nem amá-lo. "Não soube vê-lo como ele é. Então, ele parte para uma aventura para tentar se encontrar, se entender, para descobrir o mundo. E ele está desconfortável, porque percebe que também não pertence àquele lugar", explica Pigossi. "Para mim, a beleza do filme é que depois ele descobre que é importante pertencer a si mesmo. E tem o personagem do Mauríce. A grande beleza desse filme é que eles se encontram, os dois, num lugar de não pertencimento."