
A ficção distópica de contornos femininos, escrita por mulheres e com uma perspectiva que se debruça mais sobre aspectos existenciais e introspectivos do que sobre a ação ganham uma nova prateleira no mercado editorial brasileiro. Três autoras chegam aos leitores com histórias envolventes que convidam a refletir sobre reações e sentimentos em um universo abalado por fenômenos físicos inusitados, curiosos e intransponíveis. Para quem prefere trocar a fantasia alucinógena do carnaval pela distopia especulativa, é uma boa pedida.
Viagem no tempo
Um vaivém de séculos e de planetas é a marca de Mar da tranquilidade, que de tranquilo tem pouquíssima coisa. O sexto romance de Emily St. John Mandel, que fez enorme sucesso com o apocalíptico Station Eleven (transformado em série pela HBO), transita entre 1912 e 2401, anos chave para compreender a história de Olive e Edwin. Ela é uma autora famosa, moradora de uma colônia lunar num estado totalitário, em turnê para divulgar o novo livro, quando irrompe uma pandemia. Ele, aparentemente, é um rapaz de uma família nobre inglesa que se aventura na guerra e acaba presenciando uma anomalia temporal.

Mar da tranquilidade, apontado por Barack Obama como um de seus preferidos, é um romance sobre pandemia, mas também sobre viagem no tempo. "Eu havia começado a escrever alguns fragmentos de autoficção como um experimento formal no final de 2019, mas comecei a escrever Mar da tranquilidade de fato em março de 2020, nas primeiras semanas em que Nova York estava entrando em lockdown e os casos e mortes estavam aumentando rapidamente", conta a autora, em entrevista ao Correio. No romance, a pandemia ocorre no século 24, e Olive quase fica presa na Terra e, por muito pouco, não morre da doença. Parte do charme da narrativa está em especular o que pode acontecer se viajantes do tempo avistassem às pessoas sobre fatos do futuro.
Como as mudanças na linha temporal afetariam o curso da humanidade? Olive e Edwin são duas pontas soltas nesse cenário, que é permeado por um ministério que controla as viagens temporais e o que pode ou não ser mudado. A história dividida em saltos e mistérios prende o leitor em uma narrativa considerada por muitos imersiva. "Fico muito feliz quando os leitores acham o trabalho imersivo, porque estou sempre tentando lançar um feitiço", brinca Emily. "Mas não sei dizer exatamente por que os leitores acham meu trabalho assim. Não tenho objetividade sobre minha própria escrita."
Entrevista//Emily St. John Mandel
Se Station Eleven foi seu livro sobre a pandemia, podemos classificar Mar da tranquilidade como pós-pandemia? E, nesse contexto, qual é o futuro da humanidade?
Eu não sei qual é o futuro da humanidade. Na verdade, eu não chamaria Station Eleven de um romance sobre pandemia. É um livro pós-apocalíptico no qual o evento apocalíptico em si é quase incidental. Eu estava muito mais interessada em escrever sobre como o mundo seria vinte anos após um evento apocalíptico do que no evento em si, então aquela pandemia de gripe poderia muito bem ter sido uma catástrofe de outro tipo.
Qual foi a influência da pandemia no Mar da tranquilidade?
Sabemos tanto sobre a covid-19 agora que é fácil esquecer o quão pouco sabíamos no começo e o quão assustador foi. Houve uma semana, no início de abril de 2020, em que 700 pessoas morriam de Covid todos os dias na minha cidade, e o terror daquela época é difícil de descrever. Minha filha tinha 4 anos quando a pandemia começou. Eu não tinha muita ajuda com os cuidados infantis, então, na maior parte do tempo, éramos só eu e ela nos primeiros dias, passando horas e horas juntas. Eu acordava às quatro da manhã todos os dias para escrever o romance antes que ela acordasse. Naquela época, nossa tarefa como pais de crianças pequenas era criar um ambiente tranquilo e esconder nosso medo, e sinto que consegui fazer isso. Foi, de muitas formas, um período muito doce. Um dia naquela primavera, tive uma realização estranha: a vida pode ser tranquila diante da morte. Coloquei essa frase no livro, e ela se tornou a base do título.
Por que criar um romance com viagem no tempo como tema?
Sempre gostei muito de histórias sobre viagem no tempo. Como mencionei, quando comecei a escrever este livro, era março de 2020 em Nova York, e tudo ao meu redor estava horrível. Eu estava interessada em escapismo. Achei que escrever sobre um detetive de viagem no tempo seria divertido.
Mar da tranquilidade pode ser classificado como um romance distópico?
Na verdade, não tenho certeza se chamaria Mar da tranquilidade de distópico. Uma parte do romance apresenta um estado totalitário, mas outra parte envolve um mundo onde a viagem interplanetária é possível e ainda existem turnês de livros, o que é uma visão bastante utópica do futuro. As outras duas partes se passam na Inglaterra e no Canadá em 1912, e em Nova York em 2020.
Dia da marmota
Tara Selter está presa no dia 18 de novembro. Aconteceu durante uma viagem a Paris, quando pretendia adquirir alguns itens para o negócio de venda de livros antigos que ela e o marido, Thomas, tocam no interior da França. Sobre o cálculo do volume, da dinamarquesa Solvej Balle, é pura ficção científica, já que trata de uma anomalia temporal, mas não segue a estrutura tradicional do gênero. Está mais para um romance filosófico, no qual Tara pouco especula sobre como ficou presa nesse looping temporal e se dedica mais a tentar compreender o mundo a partir dessa nova condição.
Balle começou a escrever o livro em 1987 e, no início, sabia apenas que se tratava de uma mulher presa num dia que se repetia infinitamente. Nos anos seguintes, escreveu algumas cenas, mas ainda não tinha noção de como a história cresceria. “De certa forma, desde o começo eu sabia que essa ideia levantava muitas questões — era meio óbvio que muitos pensamentos existenciais surgiriam dessa premissa —, mas acho que eu não havia percebido o quanto de material havia ali. Desde a maneira como percebemos o tempo até como os objetos materiais se comportam — e como nos relacionamos com eles — ou como nos relacionamos uns com os outros em circunstâncias diferentes”, conta a autora, que transformou a história em sete volumes, dos quais dois foram lançados no Brasil. É uma obra ambiciosa, na qual Balle se propõe a refletir não apenas sobre o tempo e como a humanidade dispõe dele, mas sobre o amor e sua transformação.
Nos primeiros momentos do romance, Tara decide voltar para casa e para o marido, mas a situação se torna insustentável uma vez que, toda manhã, ela precisa explicar a ele e convencê-lo de que está presa no dia 18 de novembro. Ela não perde a memória, mas, para ele, o dia 18 nunca ocorreu antes. “Por muito tempo, achei que era, principalmente, uma história de amor — mas, é claro, uma história de amor bastante filosófica, já que também tratava do comportamento do tempo. Depois, o livro também passou a ser sobre como tratamos o mundo em que vivemos, sobre como reagimos às mudanças e sobre nosso desejo de conhecer mais sobre o mundo ao nosso redor”, conta a autora, em entrevista ao Correio.
O volume um foi publicado na Dinamarca pouco antes dos primeiros confinamentos de combate à covid-19. Na época, Balle, lembra, muitas pessoas interpretaram o romance como um livro sobre estar isolado em casa e desconectado do mundo. É uma leitura possível.
Um clássico de guerra

Publicado em 1963, em plena guerra fria, A parede trata de isolamento. A narradora está presa em um chalé nos alpes austríacos, rodeada por uma parede transparente que não consegue transpor. Enquanto tenta entender o fenômeno, ela também precisa se reorganizar mentalmente para lidar com a situação. Acompanhada de um cachorro, uma vaca e uma gata, ela passa então a questionar a sociedade que a rodeia e parece petrificada. Logo começa a perder as referências e a própria identidade feminina é questionada e posta em dúvida. O livro, publicado originalmente em 1968 e adaptado para o cinema em 2012, é um clásico da distopia feminista.
Serviço
Sobre o cálculo do volume
De Solvez Balle. Tradução: Guilherme da Silva Braga. Todavia, 150 páginas. R$ 69,90
Mar da tranquilidade
De Emily St. John Mandel. Tradução: Débora Landsberg. Intrínseca, 249 páginas. R$ 63,90
A parede
De Marlen Haushofer. Tradução: Sofia Mariutti. Todavia, 252 páginas. R$ 94,90