
O livro Ainda estou aqui foi lançado em 2015 e fez bastante sucesso na época, como boa parte dos livros de Marcelo Rubens Paiva, ganhador de três prêmios Jabutis. Mas, ao servir de base para o roteiro do longa de Walter Salles, que chega a 2025 como concorrente ao Oscar de melhor filme, ganhou novo fôlego.
Está na 17ª impressão, vai ser traduzido nos Estados Unidos e Reino Unido pela editora Charco e já vendeu 100 mil exemplares. No mês passado, o relato no qual Marcelo faz uma homenagem à mãe ao contar a história de como Eunice Paiva tocou a família após o desaparecimento de Rubens, foi tema do clube de leitura da Biblioteca Demonstrativa de Brasília (BDB).
Ainda estou aqui é um livro sobre memória. Não apenas a pessoal, a particular, aquela de cada um e de cada família, mas também coletiva. O autor e narrador parte das lembranças da infância para percorrer um episódio doloroso que transformou a família e projetou os Paiva em um cenário de luta e busca pela verdade e pela justiça em várias dimensões, mas especialmente aquela referente à violência cometida pelo Estado durante a ditadura militar.
Eunice é a protagonista dessa história. Depois de ter o marido sequestrado de casa, torturado e morto — informações que ela levou décadas para confirmar —, decidiu estudar direito e ser ela mesma uma ativista pelos direitos humanos.
Eunice precisou lidar com várias mortes. Rubens desapareceu em 20 de janeiro de 1971 e teria sido morto no dia seguinte, mas a mulher levou de anos para ter essa confirmação. O atestado de óbito só veio em 1996, 25 anos depois.
Durante esse tempo, Eunice não era, oficialmente, viúva. Também não era casada. Não podia fazer um inventário, mexer em contas bancárias conjuntas, vender patrimônio, receber seguro.
Anos depois, graças à luta da família e aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e do Grupo Justiça de Transição, do Ministério Público Federal, os responsáveis pela morte de Rubens Paiva finalmente sentariam no banco dos réus para uma audiência mas, mesmo assim, nunca seriam julgados. Eunice não pôde acompanhar todos os detalhes. Acometida pelo Alzheimer e pela perda gradual da memória, ela morreu em 2018.
Professora do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB), Regina Dalcastagnè releu Ainda estou aqui para participar do grupo de leitura da BDB. "Eu lembro de ter lido o livro com aquele arrepio na espinha, aquela sensação de 'essa história não acaba nunca'. E o próprio texto vai indicando isso", diz a professora. "O livro é muito interessante e muito rico.
Para o clube, reli também o Feliz ano velho. O Marcelo conseguiu, muito jovem, fazer uma narrativa que prende o leitor. Ele não é simplesmente uma vítima, tem graça, humor, vai mesclando a tragédia pessoal dele, o acidente, a vida de estudante universitário, a vida dos pais, a infância, a vida política do país. Ele consegue um livro que fala muito daqueles tempos. E o Ainda estou aqui foi um complemento, especialmente para quem leu o primeiro, porque tem respostas que não tinha no primeiro, mais informações."
Regina acha importante chamar a atenção para o livro sobretudo por causa do trabalho de discussão da memória proposto pelo livro. "É a memória do pai, que precisa ser registrada e que é apagada, e essa mãe, que é guardiã da memória e que está perdendo a memória. Ele consegue dar uns toques delicados. É uma escrita muito inteligente. Não é de uma complexidade narrativa, pelo contrário, é uma narrativa que flui", analisa a professora. "É muito bonito, muito bem construído. E é a história do país, a história de muita gente, e isso as pessoas não conseguem entender."
Para Duda Brum, organizadora do clube de leitura, a obra é de importância ímpar sobretudo por causa da honestidade no resgate da história da família. "Ele conta a história da Eunice retratando as suas contradições. É um exercício muito honesto. Ele vai se inscrever nesse momento histórico, num momento muito feliz de elaboração para o país em que a gente precisa resgatar essas histórias. Acho esse exercício de elaboração da história de uma família que se torna a história de um país muito relevante", diz Duda.
Autora de As pequenas chances, no qual elabora o luto após a perda do pai, a psiquiatra Natália Timerman leu Ainda estou aqui em 2019, durante um disciplina de literatura comparada na Universidade de São Paulo (USP).
"Era uma sala cheia. E foi um livro muito importante para mim, por vários aspectos. Primeiro, pela qualidade literária, pela engenhosidade em que ele imbrica os aspectos pessoais e coletivos da memória, essa memória no sentido expandido, que diz respeito tanto ao Alzheimer quanto à ditadura, essa dificuldade nossa de lidar com essa memória que a gente, coletivamente, insiste em apagar", aponta a escritora. Ela lembra que muitos alunos choraram durante a leitura coletiva do trecho em que Eunice, já com o Alzheimer avançado, reconhece o marido na televisão.
"É muito bom que esse livro e esse filme estejam chegando tão longe. É uma história que veio de um livro, virou um filme, que tem uma força muito grande e essa força toca as pessoas e comove muito. É muito comovente", diz.
Regina Dalcastagnè costuma incluir Ainda estou aqui na lista de leitura de suas aulas de literatura contemporânea na UnB e o livro sempre causa um impacto e uma comoção. "Porque tem uma diferença em ler quantas pessoas foram torturadas, desaparecidas e mortas e acompanhar a história de alguém com detalhes. Sempre é uma aproximação à nossa história que é das melhores e absolutamente necessárias. Por isso a importância que escritores continuem escrevendo sobre o assunto", garante.