Cinema

O que os diretores que trabalharam com Fernanda Torres dizem da atriz

Irrepreensível, a atriz encanta o mundo com 'Ainda estou aqui', depois de uma trajetória sólida, evocada por vários diretores de cinema com quem ela trabalhou

Jorge Furtado, em Saneamento básico, ao lado dos atores Lazaro Ramos e Fernanda Torres -  (crédito: Globo Filmes/ Divulgação)
Jorge Furtado, em Saneamento básico, ao lado dos atores Lazaro Ramos e Fernanda Torres - (crédito: Globo Filmes/ Divulgação)

Depois de mais de 40 anos de carreira, Fernanda Torres — que estreou em longas em Inocência, dirigido por Walter Lima Jr., em 1983 — sacramentou o talento, com o Globo de Ouro (para Ainda estou aqui), antes celebrado internacionalmente com a Palma de Ouro de melhor atriz no Festival de Cannes, conquistada, em 1986, em Eu sei que vou te amar, de Arnaldo Jabor (morto, há três anos). Impossível, numa análise, não associar Fernanda Torres à mãe Fernanda Montenegro. "Ambas são muito estudiosas e muito concentradas na hora de fazer o trabalho. Nisso, também são muito semelhantes", atesta o diretor Jorge Furtado, que totaliza 14 trabalhos ao lado de Nanda, como os íntimos a chamam.

Cineasta de Saneamento básico, o filme, que, em 2007, uniu Torres em cenas com Lázaro Ramos e Wagner Moura, Furtado exalta a capacidade cômica e trágica da versada atriz que, no segundo filme (A marvada carne), levou-o, à época, estreante André Klotzel a percorrer um circuito: "Fomos para além dos festivais brasileiros, com idas a Cannes e Tóquio".

Além de Klotzel e Furtado, o Correio buscou a ajuda de um guru do riso, o diretor de Os normais, José Alvarenga Jr., a fim de desvendar segredos do potencial pleno de Fernanda Torres. "Ela carrega, com a tradição familiar, o entendimento de viver, todo o dia, o lado artístico da vida e do mundo. Fernanda Torres é admirada, no set, pelo talento extraordinário que tem para o drama e para a comédia. Além disso, é tida como das pessoas mais queridas, no comentário geral", detecta. É na base do "carioquês" que Alvarenga sintetiza: "Ela é 'muiiiito' gente fina, mesmo sendo uma 'gênia' (risos). Quando ela ganhou o prêmio, mandei um meme, em que ela se candidataria para ser a técnica do Botafogo. Ela riu". Botafoguense, doente, o diretor que completa a diversão: "Te digo, nisso, ela seria muito bem-vinda. Eu não teria medo, não. Porque eu acho que ela é muito capaz".

Entrevista // Jorge Furtado, diretor e roteirista

O que tem de semente de Fernanda Montenegro na Fernanda Torres?

Já fiz trabalhos em que a Montenegro era a mãe da Torres e, na mesma obra, a Torres fazia o papel da Montenegro jovem. Elas são muito parecidas, fisicamente e no jeito de atuar. A Fernanda tem uma maneira de falar que a Fernandinha faz imitando, brincando. Têm temperamento e talento semelhantes. São ainda duas grandes comediantes. E é aquela história: grandes comediantes são grandes atores que fazem drama também.

Qual a afinidade que vocês cultivam?

O primeiro trabalho que nós fizemos juntos foi um Comédias da vida privada, de 1995. Foi das poucas Comédias que eu dirigi; escrever, escrevi muitos dos programas. Chamava-se Apenas bons amigos. Com a história de três amigos que se conheciam da final da Copa de 1970 do México e conheciam uma mesma mulher (Torres), e eles marcavam de acompanhar as Copas, juntos. O roteiro era bastante baseado em Nós que nos amávamos tanto (1974), e tive a oportunidade de mostrar para o grande Ettore Scola. Fernanda me ajudou bastante: eu estava chegando na Globo. Quatro anos depois, fiz Luna caliente, e a chamei. Firmamos uma superparceira no longa Saneamento básico. A equipe ficou muito tempo junta, no interior do Rio Grande do Sul. Noutra relação, fomos colegas de roteiro na série Bicho homem (feita para o Fantástico) e ainda no programa especial, de 2020, na pandemia, Amor e sorte.

Qual a importância do Globo de Ouro?

Havia uma certa má-vontade do país com seus artistas. No Brasil, estava ficando difícil ser artista, porque parecia que se fazia só para eles (as obras), sem interesse do público. O cinema brasileiro estava se afastando um pouco, talvez do público, e o prêmio de Ainda estou aqui faz a gente ver, com pitada de espírito colonial, e achar 'que bom', já que a matriz (Hollywood) nos considera, então 'deve ser bom' (risos). Há este sentimento de vira-lata. Mas, de qualquer maneira, é muito importante por despertar um monte de gente que não estava prestando atenção no cinema brasileiro. Tem muitos filmes de qualidade. No momento, há Ainda estou aqui e Auto da Compadecida 2, com enorme bilheteria. Há um gosto voltando. Há qualidade para nosso audiovisual, o que é muito bom para todo mundo.

Fernanda é por todo momento divertida? E tem lados a serem desvendados?

Ninguém é full time divertido (risos). Fernanda é muito engraçada e um ótimo papo. É uma grande pensadora também, por ter muita leitura. Ela e eu trocamos muitas referências de filmes e de livros. Ela tem uma cultura bem clássica, por influência dos pais. Ela lê muito, é uma ótima leitora. Não à toa, é uma grande escritora. Enfim, se ela tem lados a serem desvendados? Não sei: ela toca piano, ela gosta muito de ciência. É uma personalidade bem múltipla. Todo tempo que eu convivi com ela sempre foi muito divertido. Vivi muito com a mãe também, em vários trabalhos, especialmente no Doce de mãe (série premiada no Emmy Internacional). Somos muito amigos e, enfim, é um prazer sempre falar com elas.

Artista consciente, desde o começo 

Por duas vezes diretor de Fernanda Torres no cinema, André Klotzel tem especial memória de A marvada carne que, em meados dos anos 1980, arrebatou 11 prêmios no Festival de Gramado. "Ficamos em todos (da equipe) em Juquitiba (SP), morando junto. Houve um trabalho de preparação muito longo. Fernanda era iniciante, enfim, todo mundo conviveu muito. Além do talento muito grande, ela, adolescente, vinha do Teatro Tablado e havia a preparação da própria família. Fernanda vinha de um ambiente em que estava tudo incorporado nela. Ela se encontrou neste primeiro filme (A marvada carne), indubitavelmente", comenta o diretor.

No longa, a personagem de Fernanda, Carula, "alavancava tudo no desejo" de Nhô Quim (vivido por Adilson Barros), e casadoura, discutia com Santo Antônio. Fernanda levava adiante o enredo da fome e da vontade de comer. "Ela tinha aquilo tudo presente em si. Depois de ler o roteiro, no dia seguinte, veio e falou um monte de coisa: como era o filme, quem era a personagem. Eram elementos dela, e era sensacional por ela entender completamente a intenção daquele que também era meu primeiro filme", lembra Klotzel.

Para além da "força da natureza", encerrada por Viola Davis e Selton Mello, Fernanda simboliza resistência à frente de filmes como Capitalismo selvagem (1993), sátira que mesclava temas advindos da natureza e da falta de consciência ecológica. "Foi um filme que eu tinha dinheiro para fazer, antes de o Collor acabar com o Brasil. Aquele foi o único filme brasileiro rodado em 1992. Ainda hoje, é chato de reclamar, mas são filmes que não se podem ver, hoje em dia, pela falta de qualidade das cópias, antigas. Noutros países, há acervos de qualidade boa, que trazem o benefício da memória e, economicamente, ocupam espaço de canais, de streaming. No Brasil, nem os filmes com a Fernanda Torres a gente pode assistir", lamenta.

No ano passado, ao menos o áudio de A marvada carne passou por estúdio, para ter ruídos filtrados, numa pretensão de futuro restauro. Resgate de história também se vê em Ainda estou aqui, como pontua Klotzel. "O momento em que o filme veio é genial. O momento é político, além do (teor) cinematográfico. O Lula dia desses falou: 'ainda estamos aqui apesar dos golpistas'. O filme casou com a era em que há esquentamento político. É um filme extremamente oportuno", opina.

 


  • André Klotzel, diretor de Capitalismo Selvagem, com Fernanda Torres
    André Klotzel, diretor de Capitalismo Selvagem, com Fernanda Torres Foto: Divulgação
  • Os Normais 2: bastidores com José Alvarenga Jr., Luis Fernando Guimarães e Fernanda Torres
    Os Normais 2: bastidores com José Alvarenga Jr., Luis Fernando Guimarães e Fernanda Torres Foto: Imagem Filmes / Divulgação
Ricardo Daehn
postado em 12/01/2025 07:10
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