Um peso diferenciado para o cinema brasileiro que, num distante passado teve expressões como Glauber Rocha, Ruy Guerra, Anselmo Duarte, Cacá Diegues, Leon Hirszman e Nelson Pereira dos Santos alvancando o orgulho nacional, no exterior, em festivais como os de Cannes, de Veneza e de Berlim.
A vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, na categoria de melhor atriz dramática, alinha esta estrela — uma verdadeira cria do cinema brasileiro, com o pedigree da mãe Fernanda Montenegro e do pai Fernando Torres (falecido em 2008) — à realeza da sétima arte no imaginário internacional.
No Globo de Ouro, na mesma condição de Fernanda, foram cristalizados raros talentos estrangeiros como Anna Magnani, Leslie Caron, Liv Ullmann, Anouk Aimée, Ingrid Bergman e Isabelle Huppert. Poucas destas, entretanto, conquistaram o Oscar; mas Fernanda Torres causa barulho com uma possível indicação ao maior prêmio da indústria que terá os indicados conhecidos no próximo dia 17.
"Antes da premiação, o filme Ainda estou aqui se posicionará como, talvez, a principal produção cinematográfica latino-americana do ano e uma das mais poderosas e mais empáticas do cinema de arte de 2024, com um drama delicado, tragicamente tão brasileiro, e, ao mesmo tempo, tão universal", observa Amir Labaki, crítico de cinema e diretor de um dos maiores festivais de documentários da América Latina, o É Tudo Verdade. Ele completa: "A emocionante premiação de Fernanda Torres tem um triplo sabor: o de excelência reconhecida, o de tradicional barreira driblada (de filme falado em idioma diferente do inglês) e o de injustiça histórica de certa forma reparada".
A reparação chega plural. Ao responder sobre o clima de vitória como se fosse numa Copa do Mundo para os brasileiros, Fernanda Torres lembrou de Central do Brasil — quando a mãe, Fernanda Montenegro, perdeu o Globo de Ouro, há 25 anos, e os "brasileiros tomaram como algo pessoal", disse, surfando no quê de revanchismo e celebrando o "efeito muito patriótico" de Ainda estou aqui.
"O Globo de Ouro torna o Brasil um país muito feliz, com este prêmio", acrescentou. Em comunicado à imprensa do Brasil, Fernanda Torres dimensionou a personagem que a consagrou. Saída da vida real, a ativista Eunice Paiva, viúva do ex-deputado Rubens Paiva, movimenta a memória afetiva do longa.
"Estou feliz pela importância que o filme tem para uma família chamada Paiva, que nunca teve o direito de sequer enterrar seu pai, o Rubens. Por meio desse filme, de alguma maneira, a gente está promovendo uma forma de reparação para eles", declarou a vitoriosa.
Em entrevista à Globonews, Fernanda Montenegro disse: "Eu sabia que ela ia ganhar. Porque esse mistério não sei, mas eu sabia que minha filha ia ganhar esse prêmio".
O ator Paulo Betti considera esse um momento excelente do cinema brasileiro, com prêmio inédito. "Há tema muito relevante e jovens tomando consciência de que a ditadura foi horrível. Justo no momento em que O auto da Compadecida 2 também está lotando as salas e o filme Malu, igualmente, está prestigiado. É um bom momento para consolidar a cota de tela em nossos cinemas", celebra Paulo Betti que, há 30 anos, interpretou o guerrilheiro Carlos Lamarca na telona.
Nascida na alta casta da produção de filmes nacionais — com os pais, Luiz Carlos Barreto e Lucy Barreto, à frente de longas indicados ao Oscar, como O quatrilho (1995) e O que é isso, companheiro? (1997), esse último título que uniu nas telas Fernanda Torres e a mãe Fernanda Montenegro, a quem a premiada atriz agradeceu no palco —, a produtora de cinema Paula Barreto avalia: "Este foi um prêmio político. Uma vitória não apenas do Brasil, mas da América Latina.
Um prêmio que chega quando a Argentina assiste a um violento desmanche do seu cinema. Apresenta-se então o cinema brasileiro, este teimoso que não desiste nunca. Vence a arte, vence a vida, vencem as mulheres, vence a democracia. Estamos no mundo".
Num mundo paralelo, como disse em entrevista posterior à vitória, Fernanda Torres pontuou que não teria vencido o prêmio e que, assim, "seguiria, com uma vida normal". Mas tudo se desfaz, com a concreta conquista que colocou virtuais "rivais" para escanteio.
Concorriam estrelas com carreira consolidada como Nicole Kidman, Kate Winslet, Angelina Jolie e Tilda Swinton — todas antigas vencedoras do Oscar, além da atriz popular da série Baywatch, Pamela Anderson, no filme The last showgirl. Ao lado da premiada Demi Moore, a publicação inglesa BBC reparou a visão anterior de estarem "bem abaixo nas listas de previsões do futuro Oscar", mencionadas como "improváveis".
"Suas vitórias inesperadas, mais o fato de ambas terem feito discursos de aceitação emocionantes e eloquentes, as colocam firmemente na disputa por indicações ao Oscar", registra.
O trampolim para o Oscar é afirmado para Fernanda Torres, a partir desta vitória, como demarca a BBC, lembrando de diferenças e corpos de jurados: de um lado (no Globo de Ouro), menos de 340 jornalistas especializados; no Oscar, mais de 9 mil votantes de diversas áreas da indústria. Há ainda em jogo a potência do discurso da atriz brasileira, que traçou paralelo entre o passado da ditadura e a futura era de desmantelamento de Donald Trump, presidente eleito nos EUA.
"Há algo acontecendo agora no mundo com tanto medo. Este é um filme que nos ajuda a pensar em como sobreviver em tempos difíceis como este", embutiu a artista no palco do 82º Globo de Ouro, de modo elegante. O burburinho da escalada de Fernanda Torres faz sonhar ver o Brasil galgar postos de talentos alheios, mas que foram bem acolhidos como o cinema mexicano (com Guillermo del Toro, Alejandro Iñarritú e Alfonso Cuarón), a invasão hispânica com a celebração de Penélope Cruz, Antonio Banderas e Pedro Almodóvar; a projeção dos chilenos como Pablo Larraín e ainda a dupla exposição do brasileiro de coração também argentino Hector Babenco.
Novo cenário
Tida como "a maior reviravolta" pelo Los Angeles Times da festa, Fernanda foi celebrada pela The Hollywood Reporter por derrotar a constelação hollywoodiana, fator que o New York Times tachou de "inesperado", refletindo o quão "imprevisível" ficou o tabuleiro de Oscar, na "reviravolta" descrita pela Variety. Produtor de A casa de areia (2005) e Inocência (1983), o casal Luiz Carlos e Lucy Barreto avalia, ao Correio, a vitória de Fernanda Torres — "para nós Nanda, Nandinha", dizem.
"Fernanda Torres começou sua carreira cinematográfica conosco, com o filme Inocência, livre adaptação do romance de Visconde de Taunay, dirigido por Walter Lima Júnior. Trabalhamos novamente com ela em O que é isso companheiro?, adaptação do livro homônimo de Fernanda Gabeira, dirigido por Bruno Barreto, finalista do Oscar de 1998.
Fernanda é também uma grande atriz do teatro brasileiro. É uma vitória do cinema brasileiro, do cinema latino-americano, dentro do país que tem a maior indústria do mundo (os EUA). Um país que soube da importância da indústria cinematográfica dominando o mundo com a sua cultura, a sua culinária, a sua música, a sua vestimenta, e suas paisagens, desde o surgimento da sétima arte, em 1920. Viva a Fernanda! Viva o cinema brasileiro!", celebram Lucy e Luiz Carlos.
A discreta dor de Eunice Paiva no filme tocou diretores experientes como Murilo Salles que, no passado, esteve em festivais de Berlim, Tolouse, Huelva, Locarno, Leipzig e Moscou. "É um importantíssimo momento! É um prêmio muito disputado, pois inclui ainda a tevê americana. Um filme que, no Brasil, fez mais de três milhões de espectadores. Um filme sobre uma vítima de morte da ditadura militar, justamente nesse momento que tivemos no Brasil uma tentativa bizarra, portanto muito perigosa, de golpe. Tudo isso tem uma significação fundamental do papel do cinema brasileiro no próprio Brasil. Como sempre. Presente!", observa o diretor do emblemático e politizado Nunca fomos tão felizes (1983).
"Além da surpresa pela vitória, pouco esperada diante da concorrência pesadíssima, o feito de Fernanda eleva o cacife do filme não só pelo seu lado artístico, mas também pelo político. Afinal, trata-se de um filme sobre os horrores de uma ditadura, muito oportuno para um tempo em que as tentações autoritárias voltam a ameaçar nosso horizonte.
O Globo de Ouro expande certamente o alcance do filme no mercado internacional, credenciando-o para o Oscar e colocando-o na mira dos distribuidores do mundo inteiro", atesta o pesquisador de cinema e crítico Carlos Alberto Mattos.
Diante da "estranheza" da "noite de Cinderela", Fernanda contou, no exterior, que pelo fuso-horário só queria dormir, depois de umas taças de vinho branco. "É esquisito como o cinema está diferente, hoje em dia.
Alguém falando português, numa categoria muito disputada, e vencendo?!", ressaltou, incrédula. Ao Entertainment tonight, ela foi galhofeira e decretou ver "orgulhosa" a premiação do "cão de rua que fala português". Enfatizou ainda o caráter de "entidade", junto à mãe Fernanda Montenegro, ainda que tenham "existências em separado", e tratou Walter Salles como um parente.
Com possibilidades de um desempenho ainda mais denso, dada a campanha internacional altamente profissional no exterior, Ainda estou aqui puxa espectadores para a onda do cinema nacional projetado no exterior e que reforça feitos de Fernando Meirelles (Cidade de Deus), Karim Aïnouz (A vida invisível), José Padilha (Tropa de elite), Anna Muylaert (Que horas ela volta?) e Marcelo Gomes (de festivais em Cannes, Berlim e Veneza), além de Kleber Mendonça Filho (Aquarius e Bacurau).
"A vitória de Fernanda Torres, uma atriz brilhante, é o reconhecimento dela como artista e também do cinema brasileiro como um processo coletivo. Fica claro que é preciso incentivar nosso cinema como indústria. Se fizermos isso, fenômenos de público como Ainda estou aqui serão mais recorrentes", pontua Alfredo Manevy, cineasta e especialista do mercado nacional.
Produtor de filmes, como Pureza, Rock Brasília: Era de Ouro e O último cine drive-in, Marcus Ligocki destaca que "primeiro o prêmio demonstra que o Brasil é capaz competir de igual para igual com a grande indústria e talentos globais. Agora isso mostra também que é resultado de um trabalho longo e consistente". Segundo ele, filmes como Ainda estou aqui mobilizam a população às idas ao cinema e há a conexão da cultura brasileira a todo o Brasil e ainda ao mundo.