Crítica // Nosferatu ★★★★
Quase tratada como uma oferenda para um ser monstruoso (vivido por Bill Skarsgard): assim é uma das protagonistas de Nosferatu, a entorpecida Ellen (Lily-Rose Depp). Para além do registro da apropriação do sangue alheio, da possessão e de contorção e levitação, o novo filme de Robert Eggers (diretor do assustador A bruxa e do enigmático O farol) trata, essencialmente, do desejo. Inconformada com o leito nupcial (dividido com o personagem de Nicholas Hoult, Thomas Hutter, um pacato agente imobiliário), Ellen, numa conturbada Alemanha de 1838, traz uma ligação irremediável com o Conde Orlok, soprada desde a isolada região dos Cárpatos (às margens de países como Romênia, República Tcheca, Hungria e Polônia).
Entre citações de cinema — com as imagens da sombra de uma mão projetada por sobre uma cidade — o cineasta de A bruxa é vitorioso em passar o peso do clima de um ambiente assolado por uma praga. O desejo de consumir toda a vida da Terra acompanha Orlok. Uma carga putrefata infesta este personagem central que, literalmente, se arrasta numa atmosfera de pura melancolia. Alquebrado, quer cumprir o ritual de ver Ellen feliz, por "estar acompanhada da morte".
Pontuado pela alegoria vista no filme de 1992 (a cargo de Francis Ford Coppola) e o acentuado jogo de contrastantes, decisivo para o clima do clássico de F.W. Murnau, datado de 1922, o diretor do novo terror Eggers opta por mix, sem adotar linha específica. No ciclo de danação reservado aos personagens, há um equilíbrio entre a versão crua assinada por Bram Stoker (e seu famoso Drácula da literatura) e a recriação roteirizada por Henrik Galeen (à revelia dos direitos autorais, carimbada no clássico de Murnau). Muitos dos personagens se veem acordados, mas em espécie de sonho; ou melhor, pesadelo. Entre devaneios, transes e sobressaltos, pesam as imagens de tipos adoentados. O clima fica ainda mais propenso a superstições, com o desfile de camponeses e andarilhos nos arredores da Transilvânia. Um servo de Orlok (Herr Knock, papel do ótimo Simon McBurney) anuncia o caos — com direito a uma pomba, engolida, viva.
Habituais colaboradores de Robert Eggers, escalados para filmes rústicos como O homem do Norte, o diretor de fotografia Jarin Blaschke e o designer de produção Craig Lathrop apresentam novamente seus talentos em Nosferatu. Quem também desponta é Willem Dafoe, no papel do letrado Albin Eberhart von Franz. Dele parte uma das falas mais emblemáticas sobre a situação a ser enfrentada, com a chegada do conde à (fictícia) germânica Wisborg: "Vi coisas neste mundo que fariam Sir Isaac Newton recorrer à volta para o ventre de sua mãe". Outras testemunhas da calamidade serão Friedrich Harding (Aaron Taylor-Johnson) e Anna (Emma Corrin).
Numa das cenas mais fortes do longa, Ellen solta sangue dela pelos olhos e boca. Junto com a exaustiva jornada do marido Thomas, o agitado sonambulismo de Ellen, presa à cama e tranquilizada com éter, pontua a lúgubre fita de Robert Eggers, corajoso em não amenizar a carga de pecado latente na presença da bela donzela que, ao lado do protagonista, terá uma imagem de gosto duvidoso (para alguns) eternizada ao final do filme.
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