Cinema

Filme 'Meu pai, Kaiowá' conecta histórias em busca de elo perdido

Meu pai, Kaiowá, terceiro longa da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, conecta várias histórias em torno da busca da figura paterna

 É do tronco linguístico Macro-jê que vem a língua Maxakali (perpetuada em Minas Gerais), entre os indígenas Tikmu'un, conhecidos ainda por Maxakali. É do tronco da árvore genealógica da cineasta e multiartista Sueli Maxakali que brota o título do terceiro filme na mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro: Yõg ãtak: Meu pai, Kaiowá — em português claro — Yõg ãtak significa Meu pai, a ser exibido hoje, no Cine Brasília. Num revirar do passado, junto com os colegas cineastas, codiretores do longa, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luísa Lanna, Sueli parte em busca do pai, Luiz Kaiowá, apartado dela durante o período da ditadura.

"O filme conecta muitas histórias em uma só, sem se preocupar em atar todos os pontos sem nó ou ceder às expectativas por parte do público não indígena em "entender tudo", mesmo o que escapa à sua compreensão. Ao contrário, a montagem do filme busca justamente que as pontas soltas existam e animem a história do filme, já bem movimentada pelo drama de Sueli em conseguir contato com o pai, pela vida musical nas aldeias e pela vivacidade da luta pela demarcação de territórios", adianta Luísa Lanna.

Quem contextualiza a jornada dos parceiros indígenas na expressão com o cinema é o colega (e antropólogo Roberto Romero): em dezembro de 2010, Sueli e Isael receberam uma primeira oficina de realização audiovisual feita em aldeia. Isael já havia começado a gravar filmes como Tatakox (2007) e Yi'ax ka'ax (2011), mas o interesse, no circuito branco, era quase nulo. A centelha de criação levou o casal ao desenvolvimento de projetos com antropólogos e cineastas, numa arquitetura de produção que incluiu Yãmiyhex: as mulheres-espírito (2019), Nuhu Yãgmu Yõg Hãm: essa terra é nossa! (2020) e Yãy tu nuñãhã payexop: encontro de pajés (2021), donos de prêmios, inclusive, internacionais.

Mobilizar a atenção dos ãyuhuk xop (brancos) para formas de curas indígenas foi um dos focos de Sueli, com o novo longa. "Quando nossas crianças morrem, elas não morrem. Elas se encantam e acompanham suas mães. Curam suas mães. Por isso é tão importante para nós Yãmiyhex: as mulheres-espírito. São elas que nos fortalecem. Nós, mulheres Tikmu'un. E são elas que curam os nossos doentes junto de todos os nossos Yãmiyxop (povos-espíritos). Por isso, os Yãmiyxop são tão importantes para nós e por isso é tão importante para nós mostrarmos no cinema os nossos Yãmiyxop e seus cantos", explica Sueli Maxakali.

Noutra via, a "interferência branca" — como reforça Roberto — "infelizmente" está por toda parte no filme e na vida dos povos indígenas. "Essa interferência começou em abril de 1.500 com a chegada de alguns botes de náufragos portugueses nas águas do litoral sul do atual estado da Bahia. Três séculos e meio depois, dois irmãos franceses inventaram uma coisa chamada "cinematógrafo" e deram origem ao que entendemos hoje por "cinema". Desde então, esse equipamento se desenvolveu e tornou-se mais barato, portátil e popular e, sobretudo, a partir dos anos 1980 veio parar nas mãos de indígenas no Brasil. Desde então, estes povos têm conhecido, se apropriado e transformado as formas de representação racistas através das quais ficaram conhecidos mundo afora pelas mãos de cineastas brancos".

Um retrato da "família tradicional brasileira" pesa no longa, como defende Luísa Lanna. "O filme narra, em muitas versões, a história do pai, ao passo em que acompanha "ao vivo" a busca de Sueli por ele, 40 anos depois de que foram separados quando ela tinha seis meses. Pensamos, coletivamente, o trabalho. É um filme que atravessa o Brasil e é atravessado por ele, e que, sabidamente, apenas tangencia a chamada história oficial", explica Luísa Lanna. Yõg ãtak: Meu pai, Kaiowá foi filmado em quatro territórios indígenas e na longa estrada que os conecta. Os territórios são Aldeia-escola-floresta (perto de Teofilo Otoni, MG) e as aldeias Panambi Lagoa Rica, Guyra Kambiy e Laranjeira Ñanderu, do povo Guarani e Kaiowá, localizadas próximo ao município de Douradina, MS.

As várias versões sobre o que levou Luiz Kaiowá até os Maxakali, no período da ditadura, conforme são contadas pelos personagens Kaiowás e Maxakalis no filme, inclusive por Luiz, se tornaram, bem mais atraentes do que a tentativa de recompor os chamados "fatos". "Fizemos as versões coexistirem, em vez de tentar reduzi-las a peças de um quebra-cabeças inacabado. Esse é o principal gesto da montagem do filme e uma lição que podemos tomar das histórias indígenas. A montagem prioriza a duração dos planos e a coerência interna das falas dos personagens, respeitando a criatividade de suas formas de elaboração e expressão", pontua Luísa Lanna. Roberto Romero reforça que já passou da hora dos brasileiros entenderem que o "cinema brasileiro" pode ser falado, ao menos 200 línguas diferentes. "O nosso Meu pai, Kaiowá, por exemplo, é falado em três: Maxakali, Guarani Kaiowá e Português. Chegamos, enfim, em Brasília, mas, para evocar as palavras do Sr. Luiz Kaiowá (o pai) no filme: 'não usamos gravatão , viemos de "pé no chão'", conclui.

 

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Anavilhana/Divulgacao - Suçuarana
Fotos: Roberto Romero/Divulgação - Anavilhana/Divulgação - Luísa Lanna
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