A mostra competitiva do 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro começa com uma estreia no Brasil: o longa Suçuarana da dupla Clarissa Campolina e Sérgio Borges já chegou à vitrine internacional, no 60º Festival de Cinema de Chicago, competindo ao lado de filmes dos reconhecidos Miguel Gomes (de Portugal) e Payal Kapadia (da Índia). "O público foi super receptivo, e debatemos a exploração da natureza, a precariedade do trabalho e a visão de mundo comunitária e individual", explica Clarissa, em entrevista ao Correio. Ela adianta características da protagonista Dora (Sinara Teles, atriz da Companhia Coccix, grupo de teatro da periferia mineira), que rejeita a imposta estabilidade doméstica outrora reservada às mulheres. "Dora opta pela estrada como espaço de liberdade e autodescoberta. Traz gestos e escolhas imprevisíveis", define.
Ao custo de R$ 2,5 milhões, o filme foi rodado, em julho de 2022, por seis semanas, num projeto que teve lampejo em 2014, quando Sérgio Borges (codiretor) foi convidado a ler A fera na selva (de Henry James), que virtualmente dá base ao filme. "Construímos, entre outras coisas, caminhos para encontrar vínculos nas histórias pessoais e no modo de ser de cada intérprete com os personagens que iriam representar", explica Sérgio Borges, lembrado pelo vencedor de Candangos O céu sobre os ombros (há 14 anos).
"Volto para Brasília, carregando lembranças felizes", pontua o cineasta. Num histórico que começou com um curta, apresentado em 2006, Clarissa Campolina teve Canção ao longe exibido há dois anos no evento.
Entrevista // Clarissa Campolina e Sérgio Borges, diretores
Há a importância da vida em conjunto retratada no filme, não?
Sérgio Borges — Suçuarana é livremente inspirado na obra A fera na selva, do Henry James, que é do fim do século 19, e que foi escrita num momento de crise do romantismo. E é disso que trata o livro, para além do mistério, de sua composição psicológica e de outros elementos de linguagem particulares à estética de James. Em nossa transposição para o tempo e o contexto de hoje, Clarissa e eu começamos a debater qual seria a crise do nosso tempo, entre tantas crises, que deveria nos guiar.
A codireção ampliou de que forma a criação?
Clarissa Campolina — No início dos anos 2000, Sérgio e eu fundamos o coletivo Teia (2002-2014) em Belo Horizonte. Agora, pela primeira vez, dividimos a direção. Tudo é resultado de uma amizade, de um respeito e de uma admiração mútua. Para mim, foi um processo de aprendizado, encontros e, também, embates. Porque é muito importante em um trabalho de criação compartilhada nos despirmos de nossas certezas para deslocar nossa forma de olhar para o mundo, nos colocando em risco a fim de construir algo que seja mais justo para o filme.
O que espera do Festival?
Sérgio — O festival de Brasília é o evento de cinema mais antigo do Brasil e um festival dedicado inteiramente ao cinema nacional. É um patrimônio da arte brasileira. Na maioria do tempo, Brasília figurou como a principal vitrine do cinema brasileiro.
A personagem central é uma solitária por excelência? Incorrigível?
Clarissa — Dora (Sinara Teles) é uma mulher forte, que vive na estrada em busca de uma terra sonhada por ela e por sua mãe. Ela caminha por uma paisagem árida, encontra pessoas e nos mostra que a estabilidade não é uma opção possível para sobreviver em mundo hostil. Nesse sentido, à primeira vista, ela parece resistir às conexões afetivas duradouras. Contudo, ao longo do filme, Dora se abre tanto para a comunidade que a acolhe, quanto para o cachorro que a guia. Assim, Dora nos revela sua capacidade de estar junto, suas vulnerabilidades, sua alegria e seu afeto.
O filme traz muitas questões de coletividade?
Sérgio — Decidimos olhar para a relação entre o individual e o coletivo e como essas forças operam na sociedade, pois nesta questão está grande parte dos problemas contemporâneos — a carência de um pensamento e uma prática coletiva dentro de um sistema de mercado que impregna de individualismo e egocentrismo a vivência cotidiana. Este debate tornou-se um dos principais vetores do nosso processo de criação. No filme, entramos em contato com um mundo individualista e explorador. Fica latente a disputa de mundo. Mas, algo se transforma...
Em que localidades filmaram?
Clarissa — Suçuarana surge a partir da relação entre a história de Dora e a paisagem em que ela habita. O espaço para nós era muito importante para a construção do filme, não apenas por sua visualidade, mas também por sua história, pelos rastros, pelos indícios de outros tempos que estão ali incrustados nas paisagens. Inclusive, a história colonial mineira, sua tradição extrativista e escravagista, nos guiou na elaboração do filme e na construção dos personagens. Para fortalecer esse sentido e integrar história e paisagem, nós filmamos na região de Ouro Preto e nos arredores de Belo Horizonte, com atores profissionais e não profissionais. A primeira parte do filme é interpretada por atores profissionais que se relacionam apenas com a Dora, fortalecendo um estilo de vida mais individualizado.
Como orientaram os atores Carlos Francisco e Sinara Teles?
Sérgio — Pensamos naquilo que os uniam aos personagens, mas também, durante o processo de preparação pudemos redesenhar esses personagens. O Carlão nasceu numa comunidade quilombola em Santa Luzia, e trouxe a sua vivência pessoal para compor um dos moradores da comunidade. Já a Sinara, atriz de companhia da periferia, tem há muitos anos uma personagem que é moradora de rua. Ela tem uma característica pessoal que mistura contenção e fúria, é uma pessoa muito curiosa, questionadora e ao mesmo tempo mais fechada.
A protagonista tem mais embates com ela mesma ou com o mundo?
Sérgio — A nossa vida é transformação, quer aceitemos isso ou não. As células da pele do nosso corpo morrem e renascem a uma razão de mais de um milhão por hora. Não à toa, as narrativas do cinema são normalmente pautadas num processo de transformação: como dar a ver com a materialidade do mundo externo, as mudanças internas dos personagens.... Em Suçuarana, a paisagem, a relação com os outros personagens, a forma de enquadrar a protagonista, ora sem dividir o quadro com outras pessoas, ora inserida em cenas coletivas, nos auxiliam nessa revelação. Pesou ainda a dimensão espiritual, a representação de forças invisíveis do mundo para realçar um clima místico, de suspensão, e por vezes até fantástico.