LUTO NAS ARTES

Nascido para o palco: confira a trajetória de Ney Latorraca na dramaturgia

Na pele de personagens como Vlad e Barbosa, Ney Latorraca revolucionou a maneira de fazer humor na televisão, além de viver personagens memoráveis no teatro. O ator morreu ontem, aos 80 anos, em consequência de um câncer de próstata

2014. Crédito: TV Globo/Divulgação. Ator Ney Latorraca. -  (crédito: TV Globo/Divulgação)
2014. Crédito: TV Globo/Divulgação. Ator Ney Latorraca. - (crédito: TV Globo/Divulgação)

"O ator já nasce ator", gostava de dizer Ney Latorraca, para enfatizar que a atuação é algo tão profundo que dura para sempre. Pois essa eternidade é exatamente o legado deixado por Latorraca, que morreu ontem, aos 80 anos, no Rio de Janeiro.

O artista estava internado na Clínica São Vicente, na Zona Sul, para tratar um câncer de próstata, e morreu em decorrência de uma sepse pulmonar. Aberto ao público, o velório será realizado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, hoje, entre 10h30 e 13h30. O corpo será cremado em cerimônia para a família.

Com um histórico que compreende mais de 50 novelas, programas e séries de televisão, 20 filmes e dezenas de peças encenadas nos palcos dos teatros brasileiros, o ator era considerado um dos mestres do humor na dramaturgia brasileira da segunda metade do século 20. Nascido em Santos (SP), em 1944, e filho de um cantor e de uma corista, Latorraca começou a atuar no fim da adolescência, aos 18 anos, quando conseguiu o papel do pirata Perna de Pau, em Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado.

O sucesso da atuação abriu portas e ele passou a integrar o elenco de Reportagem de um tempo mau, de Plínio Marcos, peça que acabou suspensa pela ditadura militar. Quase desistiu da atuação, mas pediu ajuda a Cacilda Becker, que o encaminhou para a Escola de Arte Dramática de São Paulo, berço da formação de grandes atores como Glória Menezes e Juca de Oliveira.

Chegou a trabalhar em banco, loja de roupa feminina e joalheria enquanto estudava e, felizmente, voltou para os palcos e sets de filmagens, com passagens pela TV Tupi, Record e TV Cultura antes de dar os primeiros passos na Globo, em 1975. Foi nessa última que viveu personagens emblemáticos da televisão brasileira. É praticamente impossível apagar figuras como o Vlad, de Vamp (1991), o Barbosa, da TV Pirata, o Quequé, de Rabo de saia, e o Volpone, de Um sonho a mais (1985). Barbosa ficou tão famoso que Latorraca contava que volta e meia estava no palco de um teatro atuando em outra peça quando alguém gritava da plateia: "Fala Barbosa!".

Ney Latorraca também esteve à frente de O mistério de Irma Vap, peça de Charles Ludlam na qual contracenava com Marco Nanini. O sucesso foi tanto que ficou em cartaz por 11 anos e entrou para o livro Guinness dos recordes. No cinema, uma das atuações mais marcantes foi em O beijo no asfalto, adaptação de texto de Nelson Rodrigues levada às telas por Bruno Barreto.

Ao final do longa, Latorraca encena momento histórico do cinema brasileiro ao beijar Tarcísio Meira sob os arcos da Lapa, no Rio de Janeiro. Ele também viveu o pintor Jean-Baptiste Debret no hoje clássico Carlota Joaquina, princesa do Brazil (1995). Nos palcos e nas telas, trabalhou com diretores como Antunes Filho, Ademar Guerra, Gerald Thomas, Carla Camuratti e Luiz Sérgio Person.

Em cartaz com O Auto da Compadecida 2, Matheus Nachtergaele lembra de Ney como um amigo de papos incríveis e um ator exemplar. Os dois atuaram juntos em Cine Holliúdy, em 2019, em um episódio no qual Latorraca vivia, novamente, o vampiro Vlad, de Vamp. "Sempre conseguiu ser palhaço e demonstrar o patético, apesar de ter uma grande e sóbria visão sobre o mundo. Era um homem bem inteiro na sua relação com olhar para o mundo, esteve envolvido em momentos fundamentais do cinema e do teatro brasileiro e, na TV, foi um ícone de comunicação profunda, carisma absoluto e de elogio à simplicidade da interpretação", diz Nachtergaele.

"Um palhaço com P maiúsculo, que sabia demonstrar suas facetas mais frágeis, seu menino mais brincante, sem pudor. Está cravado na constelação mais bonita dos atores brasileiros."

Welder Rodrigues, da Cia. de Comédia Os Melhores do Mundo, lembra que TV Pirata foi um divisor de águas no humor brasileiro e Ney Latorraca faz parte disso. "É uma referência a ser seguida. O legado dele é gigantesco, o impacto de todos os personagens que fez na TV e no cinema, o impacto do Barbosa, do Cornélio, do Vlad. E são sempre personagens bem-humorados", diz.

"Quando sou convidado para fazer novela, falo que eu sou humorista emprestado para novela. E é óbvio que tem influência do Ney quando você faz humor na dramaturgia", completa Welder, que chegou a viajar três vezes para São Paulo apenas para assistir a O mistério de Irma Vap. "Eles trocavam de roupa de forma meio mágica mesmo, em três segundos, e faziam todos os personagens da peça. Incrível, né?", lembra.

O diretor e ator Eduardo Wotzik, que esteve em cartaz recentemente no CCBB com Hannah Arendt — Uma aula magna, diz que a partida de Latorraca deixa um buraco, um vazio nos palcos brasileiros. "Ney deixa também um estilo, de ator completo, daqueles que dançam, cantam, representam qualquer coisa, capaz de dar vida aos mais diferentes papeis e gêneros, com uma empatia rara de se encontrar entre um ator e o público. E ainda nos ensinou como transpor para o cinema um personagem rodriguiano, com seu inesquecível Arandir, de O beijo no asfalto", diz.

Ele elenca ainda papéis memoráveis em peças como Hair, Jesus Cristo Superstar, Otelo e Rei Lear. Para Wotzik, Latorraca foi responsável pela formação de toda uma geração de atores, uma lenda que, quando entrava em um recinto, deixava o tempo mais devagar.

O diretor brasiliense Fernando Guimarães lembra de quando assistiu a O mistério de Irma Vap ficou impressionado com a versatilidade de Latorraca. "Era um ator extraordinário e tinha a possibilidade de fazer bem tanto drama quanto comédia", conta.

"Se permitia ser impregnado por várias direções. Muito completo, muito divertido, muito alegre. Ele cumpriu muito bem o papel para o qual veio." Também diretor, Allex Miranda avalia que o teatro perdeu um de seus pilares, uma espécie de farol. "Ney Latorraca foi muito mais do que um ator genial; foi um inventor de momentos inesquecíveis. Ele nos ensinou que a arte vai além da técnica — é uma coragem de ser genuíno", diz.

André Amaro, criador do Teatro Caldeidoscópio em Brasília, também ficou muito bem impressionado quando assistiu a O mistério de Irma Vap. "Tive a sorte de vê-lo nessa montagem", diz. "Digo sempre, sobre alguns atores muito especiais: há atores bons e atores singulares que, além de serem bons, são dotados de uma personalidade muito particular. Acho que era o caso dele, que tinha na sua conduta como pessoa uma ironia latente. Isso me fazia vê-lo de forma diferente, sempre com aquele humor na ponta da língua, com o sorriso largo", lembra.

Para o dramaturgo Sergio Maggio, Latorraca entendia como ninguém o caminho do humor e da comédia. "Ele dava a alma, construía uma cor para cada personagem, nunca era repetitivo. Assistir aos espetáculos dele, sobretudo aqueles de multipersonagens, como O mistério de Irma Vap, era uma acontecimento teatral", lembra. "Além disso, ele tem uma história no teatro, vem dessa matriz desse teatro de resistência. O humor foi a grande resistência dele para não cair num esquema padronizado."

*Estagiária sob a supervisão de Nahima Maciel

 


Nahima Maciel
Tainá Hurtado*
postado em 27/12/2024 03:05
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