Para Renato Matos, a arte não tem limites. O baiano de nascença, mas brasiliense de coração, não é artista de uma vertente só — no violão, compõe músicas que se transformam em poesias, pinturas e performances. Chegado ao planalto em 1973, ele foi ponto crucial na construção da identidade cultural da cidade, dividindo palcos com grandes nomes, como Cássia Eller e Renato Russo. Aos 72 anos, o poeta incansável se mantém na ativa há mais de meio século e lança, quinta (19/12), às 18h, com tarde de autógrafos, na livraria Sebinho, o livro A rima é a mira.
"Eu estou lançando esse livro agora, mas de uns dois meses para cá escrevi uma pá de poesias novas e já estou pensando no próximo", ri Renato. A nova obra é uma compilação de três décadas de experimentações poéticas e artísticas guardadas pelo baiano. "Eu não escrevo por compromisso. Eu não sou aquele poeta que senta para escrever, eu tenho o hábito de escrever todo dia. Eu escrevo, porque tenho anjinhos que me dizem: 'Escreve tal coisa, vai ficar bom. Anota para você não esquecer'. Eu acordo até de madrugada para escrever", conta.
Artista multifacetado, Renato compõe poesias por meio da música. "Eu escrevo tocando meu violão. As palavras vêm com um certo ritmo musical, minha escrita é assim. Da parte musical surge a palavra, e daí vem a pintura, que gera uma poesia visual, e o teatro também. Tudo que eu já fiz e faço na vida funciona assim. É assim que eu tenho apresentado minha arte e vou apresentar até quando der", declara o poeta.
Em meio à infinitude artística de Renato, ele sempre teve como musa inspiradora a cidade que conquistou seu coração. "Eu tenho trabalhos musicais que só falam de Brasília. No começo, tudo que eu fazia era cantando a capital, as cidades satélites. Era uma música praticamente geográfica", aponta o cantor.
Em um dos principais sucessos da carreira, Um telefone é muito pouco, o baiano canta sobre o Plano Piloto e o Gama. "Toda minha impressão sobre a cidade está aí nas músicas. Eu me identifico muito com ela, até com seus silêncios", exemplifica. A música ficou famosa na voz de Leo Jaime.
Com os pés fincados em Brasília desde os anos 1970, Renato garante que nunca quis morar em outro lugar. "Já fui para Europa, Estados Unidos, viajei pela América Latina, mas sempre voltava para cá. Salvador fica como uma cidade que visito todo ano, mas eu gosto de viver a singularidade de Brasília", afirma. "Meus amigos da Bahia me perguntam como eu consigo morar aqui. Eu gosto, porque é menos barulhento. Você se acostuma com o silêncio. Aqui, eu vivo a solitude", diz.
Consciência do legado
Hoje, após uma vida dedicada à arte da cidade, Renato tem plena consciência do legado que deixou na capital. "De uma forma ou de outra, eu fui um formador de opinião estética cultural de Brasília. A idade não nega, eu tenho 72, muita gente já passou por mim. Pessoas conhecidas e também meros frequentadores da minha vida, mas todo mundo teve uma contribuição, às vezes, até silenciosa. Nós somos um resultado das pessoas com que vivemos e vice-versa", avalia o poeta.
Colecionador de amigos e parceiros artísticos, ele é reverenciado pelos demais artistas da cidade. "Quando Renato chegou em Brasília, para expor suas obras na galeria Porta do Sol, ficou hospedado na casa da minha mãe", lembra Guilherme Reis, ator e ex-Secretário de Cultura do DF. "Ele era um pintor primitivista. Em pouco tempo, foi acolhido pelas pessoas do teatro e também da música. Não havia festa em que ele não estivesse com o seu violão, fazendo a alegria da moçada. Extremamente criativo, inventava letras e melodias com muita facilidade. E, tanto na pintura como na música tornou-se uma espécie de cronista da Brasília que se construía aos poucos", opina Guilherme.
"Uma loucura", define o ex-Secretário sobre a vivência com o poeta baiano. "Era muito intensa a energia que extravasava de Renato Matos. Ele estava permanentemente compondo, criando letras, pintando o que ele via pela frente e logo foi incorporado ao pioneiro Grupo Pitu, dirigido por Hugo Rodas", relata. "Era muito divertido ver a ousadia, a criatividade e o humor que Renato trazia. De lá pra cá, dividimos peças, festivais de música, filmes, fomos companheiros na felicidade e nas complicações da vida. É um irmão que a vida me deu", assegura o ator.
Neio Lúcio, idealizador do projeto Cabeças, também foi um dos primeiros a ter contato com o recém-chegado na capital. "Conheci Renato Matos poucos dias após sua chegada a Brasília. Ele vinha da Bahia como artista plástico, trazendo consigo pinturas de traços primitivos e promissores. Naquele momento, acredito, começava a jornada de expansão de seu mundo interior, enquanto absorvia o impacto de uma cidade diferenciada que se desvelava ao seu redor", expõe.
"Com o tempo, entendi que Renato era muito mais do que o carisma típico do jeito baiano de ser. Ele rapidamente se conectou com pessoas igualmente inquietas, buscadoras, espalhadas pela geografia singular da primeira geração jovem de Brasília. Acolhido por muitos, não demorou a ingressar na tribo que percorria, com perplexidade, os amplos espaços solitários e os volumes repetidos da cidade", recorda Neio. "Tínhamos o Renato, o artista plástico; Renato, o ator — e muitos outros Renatos ainda estavam por se revelar", complementa.
A parceria entre os dois se estreitou ainda mais com o início dos Concertos Cabeças, que, nos gramados das superquadras do Plano Piloto, tinham a intenção de ocupar os espaços públicos da cidade com vivências humanas, artísticas e culturais. "Renato não se apresentou no primeiro concerto, mas já era, desde antes, um integrante essencial dessa grande família. Subiu ao palco na segunda edição e, a partir daí, de forma amplificada, começava a aparecer para a cidade o Renato Matos músico, compositor e poeta. Sua capacidade inventiva passou a ser mais apreciada, e a regularidade das atividades fez crescer exponencialmente o número de seus admiradores", garante.
"Hoje, Renato é ainda mais", opina Neio Lúcio. "É escultor, editor, inventor de sons, badalos e batuques, malabarista das palavras que desmantelam e se reorganizam em seu olhar criativo. Lembro-me de vê-lo morando em um mínimo quartinho na W3 Sul, forrado de livros dos mais diversos estilos e autores. As páginas abertas ocupavam quase todo o espaço, restando apenas o suficiente para o travesseiro, o colchão e as cobertas. Renato lia uma página e, na sequência ou consequência de outras, ia construindo os palíndromos mentais que alimentavam seus inventos. Não há um ambiente das artes em que ele não queira estar. Talvez ele precise estar, porque acredito que Renato respira o que faz — ou faz o que respira", finaliza o amigo do baiano.
Arte imortalizada
Exibido pela primeira vez no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2014, Zirig Dum Brasília — A arte e o sonho de Renato Matos, do cineasta André Luiz, imortalizou a arte do poeta baiano em forma de documentário. "O filme surgiu a partir de minha própria realização, admiração por ele e desejo de mostrar a sua arte ao maior número de pessoas", conta o diretor.
André conheceu Renato em um teste de seleção de atores para o filme Louco por cinema, em 1994. "Meu amigo também "baiano" Zé Luis Penna me disse "Seu André, tem um cara aí fora que quando você ver, você não vai acreditar… é a Bahia total!". E foi! A partir desse dia, ficamos amigos, passei a filmar os shows que ele fazia e o convidei para participar deste longa e de Sagrado segredo, muito tempo antes de pensar em fazer Zirig Dum Brasília", narra o cineasta.
"Moramos perto um do outro e não raro tocamos juntos, menos do que gostaríamos. Já compomos algumas músicas em parceria e outras estão pelo caminho, mas uma hora dessas a gente engrena um trabalho musical mais firme. Também tenho filmado algumas experiências do seu incrível trabalho Ruidísmos limítrofes que pode virar Zirig dum 2", ri.
Para o diretor, artistas como Renato são responsáveis por "oxigenar o espaço psíquico oxidado da sociedade". "A inquietação artística dele é existencial e se espraia para fora do tempo e das linguagens pois ela é a energia propulsora da sua permanente criatividade. O que diferencia Renato Matos dos demais artistas nacionais é essa inquietação associada à radicalidade criativa. Ele não abre mão da sua criação compulsiva e vive-a quotidianamente com intensidade incomparável, muitas vezes assustadora, porque socialmente, lhe custa muito. Poucos artistas que conheço tem essa capacidade, disponibilidade e respeito a esse dom nato que carrega e por isso tudo que faz tem uma qualidade excepcional", descreve André.
"De maneira geral, em um determinado momento o artista cansa, esgota-se e se acomoda, Renato não! Ele segue incomodado e incomodando… Todo artista verdadeiro é único, mas na minha perspectiva, Renato é um pouco mais único", avalia.
Ele parafraseia Hugo Rodas ao tentar resumir Renato Matos: "Ele me disse com toda espontaneidade que lhe era peculiar que ficava constrangido de ser o artista que era — que se achava libertário, transgressor e coisa e tal — diante da visceralidade criativa e da precariedade existencial de Renato. É isso! Quem vive antenado nesse espaço criativo reconhece a grandeza e a necessidade de pessoas como essas entre nós, pelo menos para nos cutucar enquanto dormimos nas nossas zonas de conforto".
*Uma parcela dos livros será distribuída para entidades educacionais, culturais e bibliotecas do DF
Lançamento
A rima é a mira, de Renato Matos
Amanhã, no Sebinho (SLCN 406, bloco C, loja 72), a partir das 18h. Preço: R$ 60