Música

Entrevista: Nando Reis define nova turnê como "oportunidade única e rara"

Compositor comenta sobre Uma estrela misteriosa, primeiro disco em oito anos, sobre as novas gerações e lembra da amiga Cássia Eller

 Nando Reis vive uma nova etapa na carreira
     -  (crédito:  LORENA DINI)
Nando Reis vive uma nova etapa na carreira - (crédito: LORENA DINI)

Um dos principais compositores e letristas da geração da música dos anos 1980 do Brasil, Nando Reis continua com a caneta quente e lançou em 2024 o disco Uma estrela misteriosa, obra de 30 músicas inéditas que inaugura uma nova fase na carreira após ter feito um pouco de tudo nos últimos tempos. Da turnê de reunião dos Titãs, a shows acústicos ao lado do filho, Sebastião Reis.

Com esse, são 10 álbuns solo e mais 13 no período de Titãs em mais de 40 anos de carreira. No entanto, o novo disco, primeiro de inéditas em oito anos, tem a novidade no som. Produzido pelo baterista do Screaming Trees Barrett Martin, o álbum eleva a complexidade sonora além de ter participações de peso como Mike McCready (guitarra) e Matt Cameron (bateria), ambos integrantes do Pearl Jam; Duff McKagan (baixo), do Guns N' Roses; e Krist Novoselic (baixo), ex-integrante do Nirvana nas faixas gravadas.

Para a turnê, apresentada pela primeira vez este ano em Brasília, Barrett Martin assume a bateria e Peter Buck, co-fundador da banda R.E.M, faz uma das guitarras. O fato traz uma aura de momentos únicos. "Uma oportunidade única e rara", destaca Nando Reis ao Correio. O músico também falou do álbum e do encontro com novas gerações em entrevista.

Entrevista // Nando Reis

Com o primeiro lançamento em oito anos, uma turnê com músicas novas e após um período em que esteve tocando tanto sozinho quanto com os Titãs, qual o sentimento dessa nova etapa?

Eu fiz nesse período muitas coisas diferentes, além de lembrar que a gente atravessou uma pandemia. O choque daquilo trouxe a todas as coisas que vieram posteriormente, especialmente aquelas mais próximas do fim da pandemia, um sentimento de urgência, de apego e até de cumplicidade com a plateia, com o show, com o evento que reúne todo mundo. É claro que é muito fácil você voltar, ainda mais eu que estou há 40 anos fazendo isso, e olhar para isso também de uma maneira técnica. Porém, é necessário um cuidado para que você não se transforme num burocrata. No meu caso, acho que seria muito difícil, afinal faço muitos shows. Por outro lado, a expectativa de sempre subir ao palco e ter uma catarse, não depende exatamente só do seu desejo, é uma coisa que não estou muito no controle.

Uma turnê nova, apresentando muitas músicas novas, apresentando um disco que tem 30 músicas. Com a oportunidade de reunir a banda que gravou o disco, que não é uma banda qualquer, pois conta com Peter Buck (co-fundador da banda R.E.M) e Barrett Martin (da Screaming Trees). Então, essa turnê tem um caráter muito especial, porque soma coisas que são apaixonantes. Além de ser minha profissão, é minha vida. Eu me dedico a isso. Eu sou um compositor, sou um artista que faz shows e sou um artista independente.

E qual o lugar do disco neste processo?

O próprio disco por si só é quase uma façanha. Conseguir reunir, produzir uma obra expressiva de qualidade alta é difícil. Então, são muitos elementos de empolgação e, ao mesmo tempo, que criam uma expectativa alta, um grau de exigência e uma margem de incerteza, trazidos pela decisão de levar para o público uma informação nova, no qual é preciso ter uma atenção e uma elaboração para que isso funcione. Então, tem a expectativa de como as pessoas vão receber.

Foi um período longo de preparação, de ensaios, de pensamento e de escolha do repertório. O começo de um show que tem uma ansiedade, ou até uma insegurança. No meu caso, ainda acrescida de um negócio que é muito prosaico, mas é fundamental memorizar as letras. Uma coisa é entrar no estúdio e gravar uma música, outra coisa é interpretá-la, ouvir esse elemento da interpretação diante de uma plateia, com o domínio, a introjeção de tudo aquilo. É uma busca daquela expressão, da forma de comunicar aquilo. Você pode ensaiar, mas a prática, o show, ele que vai te dando. Por isso que as turnês vão crescendo, vão adquirindo nuances, porque cada um de nós, os músicos e a própria banda, vai descobrindo o que é o show.

E, voltando ao sentimento desse trabalho...

Então, do ponto de vista do sentimento que você está perguntando, é emocionante. Estou fazendo uma dessas coisas que vai ficar memorável na minha vida. Nos momentos em que saí do palco, dá uma certa melancolia de que está terminando, pelo menos essa etapa, de uma coisa que me deu muito prazer e que foi musicalmente um grande aprendizado. Uma oportunidade única e rara de ter o Peter Buck no palco junto com o Barrett numa convivência. De, na estrada, sentar, parar o ônibus num posto de gasolina e conversar. De tocar, que é o que eu amo, e tocar as músicas novas que são minhas filhas. Eu sou compositor, e ver o impacto delas, ver aquilo que afeta, como sentimento, me deixa realizado. É um júbilo. E afirmo, ouso, atrevo a dizer, que quem assistiu ao show sabe, percebe isso. A grande maioria sai impactada, porque é um negócio muito forte, muito forte e, musicalmente, muito bom.

São 42 anos de estrada, entre álbuns e turnês solo e com os Titãs, com muitas conquistas e realizações. Após tudo isso, o que você tem para contar? Para colocar para fora? O que você ainda tinha para contar para as pessoas? O que você sente que está falando para o seu público?

Escrever para mim é onde todo o meu trabalho nasce, o resto é decorrência disso. A composição é costura maravilhosa, entre letra e melodia. No entanto, eu me julgo, sem falsa modéstia, um excelente letrista, ou pelo menos um letrista muito original, com uma linguagem muito característica e própria, e distinta até. Por outro lado, tudo isso surgiu de uma coisa muito prosaica, ordinária, que é expressar, encontrar o seu lugar no mundo, a sua forma de fala, que passa a ser a comunicação e que se inicia no seu círculo menor, primeiro consigo mesmo. Assim, escrever é organizar o seu pensamento e você inevitavelmente pensa 24 horas por dia enquanto estiver vivo. Dessa maneira, você vai se transformando, as suas experiências, é uma coisa cumulativa que se realimenta e produz. É que nem a memória. A memória é uma coisa que, cada vez que você revisita uma coisa que você passou, tem uma outra forma, porque está acrescida daquilo que você recolheu naquele momento. Então, não existe exatamente essa ideia de esgotamento. Ela não funciona, não serve. Até porque, embora ela esteja presente, a linguagem, a criação, tem um paradoxo, que é entre o esgotamento e a busca de não ser redundante. No entanto, com o aprimoramento de uma forma que é contínua, que pretende manter uma identidade é uma coisa constante. Então, tem aquilo que varia junto com uma constante, que nada mais é do que a sua própria individualidade. Você tem que ter o que dizer e o que fazer a cada dia que você acorda. Por outro lado, as coisas que te cercam não variam tanto. Você mora na mesma casa, tem uma quantidade de roupas semelhantes, você escova os dentes todos os dias. Então, há coisas que você faz que são constantes, mas a cada dia são feitas de uma forma diferente.

Acho que a expressão é uma espécie de atualização permanente do seu pensamento com a busca de que aquilo se organize de uma forma nova como é a novidade de cada dia que você acorda. É a busca de você ser uma pessoa em transformação. Desenvolvimento, às vezes, parece uma coisa que tem um lugar certo aonde chegar. Contudo, a transformação não se dá com um modelo.

No novo disco você terá a chance de conversar com mais uma geração que se junta as outra tantas que te acompanham durante sua trajetória. Como você percebe o fato de dialogar com novas pessoas com o passar do tempo?

É uma pergunta até difícil de responder. Vamos voltar à coisa de estar de acordo com si próprio. Eu acho que isso mantém uma coesão. Porque, de certa maneira, por mais que você possa pensar que é uma profissão excêntrica ou de exceção, muitas vezes as pessoas a tratam como se fosse uma coisa glamourosa. Eu mesmo, quando era pequeno, achava que eram meus ídolos e tudo mais.

Vou te contar uma coisa curiosa, Gilberto Gil fez a turnê Luar, em 1981. Ele fez o show no Sesc Pixinguinha. O mesmo Gil vai tocar no Allianz, naquele dia, tocou no teatro. Simultaneamente ao show, havia uma exposição de fotos do Gil. Sou muito fã dele, é meu ídolo, meu modelo. Eu fui ver a exposição e daí veio uma cena do Gilberto Gil jogando futebol. Eu fiquei de cara. Ao mesmo tempo, logo em seguida, um jornal chamado Canja, que era um tabloide maravilhoso de música, publicou uma foto que era do Pepeu Gomes guiando um carro, eu sou muito fã dos Novos Baianos. Pensei: nossa, o Gil, que é aquele deus, joga bola, ele faz uma coisa que eu faço. O Pepeu guia um carro, que é uma coisa que qualquer pessoa faz. Então, todos nós, independentemente das idades, a gente está sempre envolvido com questões que são não só temporais, como são tão ordinárias que passam a discussão de geração. Isso, de certa maneira, faz com que haja uma questão, claro, geracional, de linguagem e de época.

O que une as gerações?

Eu gosto de LP e lanço álbuns. No entanto, isso é uma questão de forma. O conteúdo tem, inevitavelmente, uma coisa que tende a ser universal, atemporal e intergeracional, que é a questão da angústia existencial e das relações amorosas. Eu, especialmente, trato disso de uma forma em que uso a música para tratar do que todo mundo gosta de falar. Dentro da minha história, quando eu toco All star é assim, todos que estão presentes cantam. Da criança de 13 ao cara que tem 70. É uma música que conta uma coisa de forma prosaica, do sujeito que pega um elevador, vai numa casa, anda num bairro, falando de uma mulher que usa um tênis igual ao dele. É quase que falar de escova de dente. Mas, ao mesmo tempo, eu estou falando de uma coisa muito complexa, uma relação de amizade, de uma projeção de uma pessoa. Então, a diferença certa é do ponto de vista. Como é que a música vai chegar se a pessoa vai digerir a quantidade de informação que tem no mundo. A forma como as pessoas consomem músicas é muito diferente se considerada uma pessoa de 13 anos e outra de 60 anos. Mas, por outro lado, na hora que se dá esse contato, tudo isso é dissolvido, tudo isso passa a ser irrelevante, ou pelo menos não é aquilo que é determinante, eu creio. Portanto, é surpreendente perceber isso.

Não é um plano, não fiz um projeto. Porque mesmo que você faça, você pode ter sonhos, mas como eles serão realizados, você não tem nenhuma garantia. O quanto mais você deseja, talvez só te dê perseverança, mas não significa que você vá, possa. Então, assim, eu ainda me espanto, que tem gente que sai de casa e vai ver o meu show. Mas é emocionante. E, por outro lado, é isso que garante que eu possa continuar fazendo esses shows.

Minha amiga Cássia

Uma das figuras mais marcantes da trajetória de Nando Reis como compositor é Cássia Eller. A cantora brasiliense entoou hinos que foram escritos por ele como Relicário e Segundo sol. Os dois eram muito amigos e um dos maiores sucessos da carreira de Nando é dedicado a Cássia. A faixa All Star.

A relação se desdobrou também para um amor do compositor pela capital. "Quando a Cássia morreu, eu ainda estava nos Titãs, mas já fazia shows solo. Porém, logo após ela partir, eu fiz um show sozinho em um shopping. Foi um dos momentos mais impressionantes e inesquecíveis da minha vida. Naquele momento, minha carreira era para dezenas de pessoas e naquele dia tinham milhares", conta. "Nessa época All star já era uma música conhecida e evidentemente muito relacionada à minha relação com a Cássia. Quando eu cantei foi uma comoção, absolutamente todas as pessoas cantavam. Chorei tanto que tive que parar, sair do palco, me recompor e voltar", lembra.

Um fato ainda mais curioso foi que a entrevista de Nando Reis ao Correio foi feita em 10 de dezembro, data em que Cássia Eller faria 62 anos. O cantor percebeu a data apenas após contar a história. "Uau, estamos aqui falando da Cássia e de Brasília no dia do aniversário dela. Isso é muito especial", declara.

Um dos principais compositores e letristas da geração da música dos anos 1980 do Brasil, Nando Reis continua com a caneta quente e lançou em 2024 o disco Uma estrela misteriosa, obra de 30 músicas inéditas que inaugura uma nova fase na carreira após ter f

Um dos principais compositores e letristas da geração da música dos anos 1980 do Brasil, Nando Reis continua com a caneta quente e lançou em 2024 o disco Uma estrela misteriosa, obra de 30 músicas inéditas que inaugura uma nova fase na carreira após ter feito um pouco de tudo nos últimos tempos. Da turnê de reunião dos Titãs, a shows acústicos ao lado do filho, Sebastião Reis.

Com esse, são 10 álbuns solo e mais 13 no período de Titãs em mais de 40 anos de carreira. No entanto, o novo disco, primeiro de inéditas em oito anos, tem a novidade no som. Produzido pelo baterista do Screaming Trees Barrett Martin, o álbum eleva a complexidade sonora além de ter participações de peso como Mike McCready (guitarra) e Matt Cameron (bateria), ambos integrantes do Pearl Jam; Duff McKagan (baixo), do Guns N' Roses; e Krist Novoselic (baixo), ex-integrante do Nirvana nas faixas gravadas.

Para a turnê, apresentada pela primeira vez este ano em Brasília, Barrett Martin assume a bateria e Peter Buck, co-fundador da banda R.E.M, faz uma das guitarras. O fato traz uma aura de momentos únicos. "Uma oportunidade única e rara", destaca Nando Reis ao Correio. O músico também falou do álbum e do encontro com novas gerações em entrevista.

Entrevista //
Nando Reis

Com o primeiro lançamento em oito anos, uma turnê com músicas novas e após um período em que esteve tocando tanto sozinho quanto com os Titãs, qual o sentimento dessa nova etapa?

Eu fiz nesse período muitas coisas diferentes, além de lembrar que a gente atravessou uma pandemia. O choque daquilo trouxe a todas as coisas que vieram posteriormente, especialmente aquelas mais próximas do fim da pandemia, um sentimento de urgência, de apego e até de cumplicidade com a plateia, com o show, com o evento que reúne todo mundo. É claro que é muito fácil você voltar, ainda mais eu que estou há 40 anos fazendo isso, e olhar para isso também de uma maneira técnica. Porém, é necessário um cuidado para que você não se transforme num burocrata. No meu caso, acho que seria muito difícil, afinal faço muitos shows. Por outro lado, a expectativa de sempre subir ao palco e ter uma catarse, não depende exatamente só do seu desejo, é uma coisa que não estou muito no controle.

Uma turnê nova, apresentando muitas músicas novas, apresentando um disco que tem 30 músicas. Com a oportunidade de reunir a banda que gravou o disco, que não é uma banda qualquer, pois conta com Peter Buck (co-fundador da banda R.E.M) e Barrett Martin (da Screaming Trees). Então, essa turnê tem um caráter muito especial, porque soma coisas que são apaixonantes. Além de ser minha profissão, é minha vida. Eu me dedico a isso. Eu sou um compositor, sou um artista que faz shows e sou um artista independente.

E qual o lugar do disco neste processo?

O próprio disco por si só é quase uma façanha. Conseguir reunir, produzir uma obra expressiva de qualidade alta é difícil. Então, são muitos elementos de empolgação e, ao mesmo tempo, que criam uma expectativa alta, um grau de exigência e uma margem de incerteza, trazidos pela decisão de levar para o público uma informação nova, no qual é preciso ter uma atenção e uma elaboração para que isso funcione. Então, tem a expectativa de como as pessoas vão receber.

Foi um período longo de preparação, de ensaios, de pensamento e de escolha do repertório. O começo de um show que tem uma ansiedade, ou até uma insegurança. No meu caso, ainda acrescida de um negócio que é muito prosaico, mas é fundamental memorizar as letras. Uma coisa é entrar no estúdio e gravar uma música, outra coisa é interpretá-la, ouvir esse elemento da interpretação diante de uma plateia, com o domínio, a introjeção de tudo aquilo. É uma busca daquela expressão, da forma de comunicar aquilo. Você pode ensaiar, mas a prática, o show, ele que vai te dando. Por isso que as turnês vão crescendo, vão adquirindo nuances, porque cada um de nós, os músicos e a própria banda, vai descobrindo o que é o show.

E, voltando ao sentimento desse trabalho...

Então, do ponto de vista do sentimento que você está perguntando, é emocionante. Estou fazendo uma dessas coisas que vai ficar memorável na minha vida. Nos momentos em que saí do palco, dá uma certa melancolia de que está terminando, pelo menos essa etapa, de uma coisa que me deu muito prazer e que foi musicalmente um grande aprendizado. Uma oportunidade única e rara de ter o Peter Buck no palco junto com o Barrett numa convivência. De, na estrada, sentar, parar o ônibus num posto de gasolina e conversar. De tocar, que é o que eu amo, e tocar as músicas novas que são minhas filhas. Eu sou compositor, e ver o impacto delas, ver aquilo que afeta, como sentimento, me deixa realizado. É um júbilo. E afirmo, ouso, atrevo a dizer, que quem assistiu ao show sabe, percebe isso. A grande maioria sai impactada, porque é um negócio muito forte, muito forte e, musicalmente, muito bom.

São 42 anos de estrada, entre álbuns e turnês solo e com os Titãs, com muitas conquistas e realizações. Após tudo isso, o que você tem para contar? Para colocar para fora? O que você ainda tinha para contar para as pessoas? O que você sente que está falando para o seu público?

Escrever para mim é onde todo o meu trabalho nasce, o resto é decorrência disso. A composição é costura maravilhosa, entre letra e melodia. No entanto, eu me julgo, sem falsa modéstia, um excelente letrista, ou pelo menos um letrista muito original, com uma linguagem muito característica e própria, e distinta até. Por outro lado, tudo isso surgiu de uma coisa muito prosaica, ordinária, que é expressar, encontrar o seu lugar no mundo, a sua forma de fala, que passa a ser a comunicação e que se inicia no seu círculo menor, primeiro consigo mesmo. Assim, escrever é organizar o seu pensamento e você inevitavelmente pensa 24 horas por dia enquanto estiver vivo. Dessa maneira, você vai se transformando, as suas experiências, é uma coisa cumulativa que se realimenta e produz. É que nem a memória. A memória é uma coisa que, cada vez que você revisita uma coisa que você passou, tem uma outra forma, porque está acrescida daquilo que você recolheu naquele momento. Então, não existe exatamente essa ideia de esgotamento. Ela não funciona, não serve. Até porque, embora ela esteja presente, a linguagem, a criação, tem um paradoxo, que é entre o esgotamento e a busca de não ser redundante. No entanto, com o aprimoramento de uma forma que é contínua, que pretende manter uma identidade é uma coisa constante. Então, tem aquilo que varia junto com uma constante, que nada mais é do que a sua própria individualidade. Você tem que ter o que dizer e o que fazer a cada dia que você acorda. Por outro lado, as coisas que te cercam não variam tanto. Você mora na mesma casa, tem uma quantidade de roupas semelhantes, você escova os dentes todos os dias. Então, há coisas que você faz que são constantes, mas a cada dia são feitas de uma forma diferente.

Acho que a expressão é uma espécie de atualização permanente do seu pensamento com a busca de que aquilo se organize de uma forma nova como é a novidade de cada dia que você acorda. É a busca de você ser uma pessoa em transformação. Desenvolvimento, às vezes, parece uma coisa que tem um lugar certo aonde chegar. Contudo, a transformação não se dá com um modelo

No novo disco você terá a chance de conversar com mais uma geração que se junta as outra tantas que te acompanham durante sua trajetória. Como você percebe o fato de dialogar com novas pessoas com o passar do tempo?

É uma pergunta até difícil de responder. Vamos voltar à coisa de estar de acordo com si próprio. Eu acho que isso mantém uma coesão. Porque, de certa maneira, por mais que você possa pensar que é uma profissão excêntrica ou de exceção, muitas vezes as pessoas a tratam como se fosse uma coisa glamourosa. Eu mesmo, quando era pequeno, achava que eram meus ídolos e tudo mais.

Vou te contar uma coisa curiosa, Gilberto Gil fez a turnê Luar, em 1981. Ele fez o show no Sesc Pixinguinha. O mesmo Gil vai tocar no Allianz, naquele dia, tocou no teatro. Simultaneamente ao show, havia uma exposição de fotos do Gil. Sou muito fã dele, é meu ídolo, meu modelo. Eu fui ver a exposição e daí veio uma cena do Gilberto Gil jogando futebol. Eu fiquei de cara. Ao mesmo tempo, logo em seguida, um jornal chamado Canja, que era um tabloide maravilhoso de música, publicou uma foto que era do Pepeu Gomes guiando um carro, eu sou muito fã dos Novos Baianos. Pensei: nossa, o Gil, que é aquele deus, joga bola, ele faz uma coisa que eu faço. O Pepeu guia um carro, que é uma coisa que qualquer pessoa faz. Então, todos nós, independentemente das idades, a gente está sempre envolvido com questões que são não só temporais, como são tão ordinárias que passam a discussão de geração. Isso, de certa maneira, faz com que haja uma questão, claro, geracional, de linguagem e de época.

O que une as gerações?

Eu gosto de LP e lanço álbuns. No entanto, isso é uma questão de forma. O conteúdo tem, inevitavelmente, uma coisa que tende a ser universal, atemporal e intergeracional, que é a questão da angústia existencial e das relações amorosas. Eu, especialmente, trato disso de uma forma em que uso a música para tratar do que todo mundo gosta de falar. Dentro da minha história, quando eu toco All star é assim, todos que estão presentes cantam. Da criança de 13 ao cara que tem 70. É uma música que conta uma coisa de forma prosaica, do sujeito que pega um elevador, vai numa casa, anda num bairro, falando de uma mulher que usa um tênis igual ao dele. É quase que falar de escova de dente. Mas, ao mesmo tempo, eu estou falando de uma coisa muito complexa, uma relação de amizade, de uma projeção de uma pessoa. Então, a diferença certa é do ponto de vista. Como é que a música vai chegar se a pessoa vai digerir a quantidade de informação que tem no mundo. A forma como as pessoas consomem músicas é muito diferente se considerada uma pessoa de 13 anos e outra de 60 anos. Mas, por outro lado, na hora que se dá esse contato, tudo isso é dissolvido, tudo isso passa a ser irrelevante, ou pelo menos não é aquilo que é determinante, eu creio. Portanto, é surpreendente perceber isso.

Não é um plano, não fiz um projeto. Porque mesmo que você faça, você pode ter sonhos, mas como eles serão realizados, você não tem nenhuma garantia. O quanto mais você deseja, talvez só te dê perseverança, mas não significa que você vá, possa. Então, assim, eu ainda me espanto, que tem gente que sai de casa e vai ver o meu show. Mas é emocionante. E, por outro lado, é isso que garante que eu possa continuar fazendo esses shows.

Minha
amiga Cássia

Uma das figuras mais marcantes da trajetória de Nando Reis como compositor é Cássia Eller. A cantora brasiliense entoou hinos que foram escritos por ele como Relicário e Segundo sol. Os dois eram muito amigos e um dos maiores sucessos da carreira de Nando é dedicado a Cássia. A faixa All Star.

A relação se desdobrou também para um amor do compositor pela capital. "Quando a Cássia morreu, eu ainda estava nos Titãs, mas já fazia shows solo. Porém, logo após ela partir, eu fiz um show sozinho em um shopping. Foi um dos momentos mais impressionantes e inesquecíveis da minha vida. Naquele momento, minha carreira era para dezenas de pessoas e naquele dia tinham milhares", conta. "Nessa época All star já era uma música conhecida e evidentemente muito relacionada à minha relação com a Cássia. Quando eu cantei foi uma comoção, absolutamente todas as pessoas cantavam. Chorei tanto que tive que parar, sair do palco, me recompor e voltar", lembra.

Um fato ainda mais curioso foi que a entrevista de Nando Reis ao Correio foi feita em 10 de dezembro, data em que Cássia Eller faria 62 anos. O cantor percebeu a data apenas após contar a história. "Uau, estamos aqui falando da Cássia e de Brasília no dia do aniversário dela. Isso é muito especial", declara.

Pedro Ibarra
postado em 26/12/2024 06:00
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