CINEMA

O filme provocante 'Salomé' é destaque no Festival de Brasília

Salomé, dirigido por André Antônio, é atração de hoje na mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

André Antônio, diretor de Salomé -  (crédito: Analu/Divulgação)
André Antônio, diretor de Salomé - (crédito: Analu/Divulgação)

Um filme ambicioso em termos visuais, feito a partir do limitado custo de R$ 2 milhões, e todo rodado na cidade do Recife: assim é Salomé, dirigido por André Antônio, e o quinto filme a ser mostrado na competitiva do Festival de Brasília. "Com mais dinheiro poderíamos ter ficado mais confortáveis e com mais tempo de experimentação. O fato desse filme se colocar de forma empática frente ao uso de uma substância entorpecente pela sua protagonista e também de considerar o sexo como algo central para a subjetividade dela (o filme tem imagens de sexo explícito) foi um entrave na hora de captar grana. E sem dúvida é um empecilho para a atual fase de distribuição. Outro empecilho é a encenação do filme se construir com um estilo artificialista e não naturalista", observa o diretor.

Na visão do cineasta, o mercado do cinema independente não quer diálogo com imagens pornográficas. "Quer projetos de filmes edificantes e com estética realista", destaca. Ainda que num flanco independente, o circuito exibidor é "bem moralista e esteticamente conformista, bem comportado", como diz Antônio,  que completa: "Acho que essa é a grande dificuldade".

Na trama de Salomé, Cecília (Aura do Nascimento) é uma jovem modelo de sucesso que mora em São Paulo. Ela volta para Recife, para passar o natal com a mãe, Helena (Renata Carvalho). A saída de Cecília da cidade de origem não foi pacífica e há dificuldades de relacionamentos. "Helena é uma mulher religiosa e parece viver num universo provinciano, doméstico, muito diferente do glamour e da ironia descolada que marcam a personagem de Cecília", conta o diretor. No enredo,  Cecília também reencontra João (Fellipy Sizernando), um vizinho da infância, neste longa que se inspirou em um filme pernambucano, Noturno em Recife Maior (1981) feito em Super-8 por Jomard Muniz de Britto. "No retorno à cidade, vale destacar que Cecilia fica fascinada pela beleza de João, e, uma noite, ele apresenta para ela um loló diferente do habitual, de cor verde, que leva à ligação entre os dois para um lugar de obsessão e mistério", adianta André Antônio.

Entrevista // André Antônio, cineasta

Que discussão pretende encampar com teu filme?

Mais do que encapar uma discussão, eu quis fazer um filme com imagens estranhas, que falasse sobre tesão, onde os personagens usassem looks legais e fosse uma experiência que despertasse algumas risadas.

Consigo visualizar, a partir da sinopse, um exemplar de A substância de moldes tropicais (risos). É isso mesmo?

Isso é engraçado. Filmamos Salomé em janeiro de 2023. Tínhamos nosso frasco de substância verde tóxica muito antes de qualquer pessoa da equipe saber do filme A substância. Salomé teve sua estreia mundial no Chile em outubro e lá muitas pessoas vieram comentar comigo que fizeram conexões com A substância e também com o álbum "Brat" da Charli XCX, porque em Salomé a cor verde tem uma presença muito forte na atmosfera. Sendo que filmamos antes dos lançamentos dessas duas obras! Acho que sempre que você lança um filme consegue fazer conexões assim porque toda época tem coisas em comum que estão "no ar". Mas, dito isso, acho que Salomé tem algo muito Recife, que é a cidade onde o filme se passa, que está bem longe da Los Angeles de A substância. Nosso líquido verde é o loló, um entorpecente muito comum no carnaval e em festas underground de Recife. Duvido que a Coralie Fargeat já tenha experimentado…

O conceito de seita é recorrente... Há uma derivação de aspectos religiosos no filme?

Ao longo dos meus filmes tenho me interessado em filmar situações que possuam um caráter ritualístico, litúrgico. É comum filmes quererem representar grupos políticos, agrupamentos de pessoas que estão juntas por um ideal de sociedade, por exemplo. Mas eu fico mais fascinado por seitas: pessoas que estão juntas por causa de uma força que as guia independentemente de suas vontades. Uma força que transcende o entendimento racional. Algo que guarda um mistério incompreensível pelo sentido lógico e que no entanto faz aquelas pessoas estarem juntas para conseguirem um objetivo. Algo que me fascina também é que, diferentemente de religiões reconhecidas e legitimadas, as seitas têm um caráter transgressor, subversivo, e, muitas vezes, precisam agir de forma secreta.

O filme deriva da peça de Oscar Wilde (escrita no século 19)? O amor é um fundamento, mas que outros sentimentos Salomé pressupõe?

A peça de Wilde foi um ponto de partida, mas o filme não é uma adaptação direta da peça. Uma das coisas que me fascinou quando li a peça de Wilde foi o fato de a protagonista estar falando de amor para uma cabeça decepada e cheia de sangue que ela segura com as próprias mãos! Acho que nas obras ficcionais heteronormativas o amor tende a ser um sentimento romântico, complacente, apaziguador. Nas obras queer a palavra amor pode adquirir outras conotações. No caso do meu Salomé me interessa ver em que medida amor e tesão se conectam.

Como trata o erotismo no seu novo filme?

Eu quis trazer o erotismo em dois aspectos. Primeiro, o de descoberta, quando o sexo chega na sua vida e parece que o portal de uma dimensão desconhecida da experiência se abre. E segundo, o de vício. Quando o sexo vira uma obsessão que pode levar você a cometer atos extremados.

Como anda o cinema gay ou esse conceito é limitante?

Entre cinema gay e pornografia gay, eu prefiro a pornografia. É como se o cinema gay pegasse a pornografia gay e tirasse dela tudo que ali tem de vivo, de novo, de inusitado e vestisse nela uma roupa heteronormativa.

José Mojica Marins, Julio Bressane e Derek Jarman gozam de que sofisticação em cinema, e como te inspiram?

Se sofisticação equivale a bom gosto, eu diria que esses cineastas não seriam considerados sofisticados por boa parte das pessoas. Os três são bem diferentes entre si, mas se há uma coisa em comum entre eles e que me inspira sempre é a coragem de criar filmes onde aquilo que está te fascinando, te obcecando, te intrigando, vai ser abordado de forma tão direta que vai torcer a imagem do filme. Vai deformar as estruturas padrões de roteiro e vai fazer brilhar na tela uma coisa nunca vista antes em nenhum outro lugar.

 

57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

No Cine Brasília (EQS 106/107), nesta quinta, às 21h, Salomé (longa), com ingressos a R$ 20. Exibição ainda dos curtas Kabuki (de Tiago Minamisawa, SC) e Descamar (de Nicolau, DF). A partir das 20h, na Cia Lábios da Lua (Gama), no Complexo Cultural de Planaltina e na Faculdade Estácio (Taguatinga — Pistão Sul), a mesma programação tem entrada
franca.

 


postado em 05/12/2024 04:01
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