Na primeira exibição pública do filme Enquanto o céu não me espera, a diretora Christiane Garcia, estreante em longa de ficção, traz franco e absoluto entusiasmo à mostra competitiva do 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. "Ao selecionar meu longa, o festival já me deu um grande presente.
Não ouso querer mais nada com um primeiro filme produzido quase de forma artesanal. Já estou bem feliz de chegar aqui e dividir uma mostra competitiva com tanta gente importante para o cinema nacional", avalia.
Com filmagens nas comunidades de Manacapuru e Iranduba, na região metropolitana de Manaus, o longa traz o apelo do nome de Irandhir Santos num enredo simples. Alinhar conexões de "essências", sempre em primeiro plano, fez a diferença, segundo a diretora que administrou cinco semanas de filmagem, num processo estudado por dois anos, sob orçamento de R$ 1,25 milhão. "O Iradhir trouxe a conexão positiva: veio com o coração e mente tão abertos para realizar a obra, somando com toda a equipe e com os atores (regionais ou não), a ponto de qualquer tipo de timidez inicial minha ter se dissipado rapidamente", conta a realizadora.
O núcleo familiar do personagem Vicente (Irandhir), um agricultor resiliente e vinculado à memória do pai, determina o conflito entre a permanência num sítio que traz instabilidade para a família dele. "O sotaque nordestino do Irandhir dentro do contexto amazônico do filme é uma forma de retratar a presença das migrações para o Amazonas e a miscigenação dos povos que habitam a floresta. Sempre admirei a força e a sensibilidade presentes no trabalho dele, o amor, a entrega em tudo que faz", comenta Christiane Garcia.
Em Enquanto o céu não me espera, o protagonista enfrenta a resistência da esposa Rita (Priscilla Vilela), numa relação em crise. Ela pretende seguir para Manaus com os filhos Firmino (Maycon Douglas), fruto de um relacionamento anterior, Francisca (Jully Fabielly) e Franciney (Cauã Eduardo).
Entre desejos está a fuga dos problemas ocasionados pelas mudanças climáticas que modificam o ciclo das águas e dificultam a colheita. "Temos também na história a presença importante de uma personagem que é muito comum na Amazônia que são as "balseiras", garotas que circulam pelos rios em canoas de rabeta fazendo programas sexuais e, por vezes, até abordando embarcações em movimento", adianta Christiane Garcia. Geisiane (Ágatha Dinelli) está no grupo e pode interferir no ideal de família de Vicente.
Entrevista: Christiane Garcia, cineasta
Como foi trabalhar com um ator de estatura global?
Escrevi o roteiro para o Irandhir Santos, nunca cogitei a possibilidade de outro ator interpretar o Vicente. Também não pensei muito em como faria o roteiro chegar até ele. Apenas escrevi. A personagem que ele interpreta é uma memória pessoal do meu avô Pernambucano, soldado da borracha, e dos meus outros parentes ribeirinhos presentes na minha infância de criança criada na beira do rio Maués-açu, no interior do Amazonas. Irandhir não é só um ator incrível, é um "parente" que carrega vários "brasís" dentro dele. Sua alma se conecta rapidamente com a verdade de cada lugar que o chama, ainda mais quando esse lugar vem com uma boa dose de desafio, como filmar num calor extremo, dentro de uma casa alagada e com diretora estreante. Fiquei um pouco intimidada pelo fato de ser meu primeiro roteiro e direção de longa de ficção e, logo de cara, ter o Irandhir no set foi meio insano.
Há exemplos ambientes interioranos nos cinemas (Marvada carne, Noites do sertão, A hora e a vez de Augusto Matraga, A febre, os filmes do Mazzaropi...). Como chegou ao retrato do que fosse, entre aspas, simples?
Minha vivência. Nasci e me criei no interior do Amazonas, na beira do rio, vinda de uma família de caboclos simples e, a floresta, com tudo que a envolve, sempre foi minha referência para tudo. Não há como eu criar qualquer coisa em termos de arte que não esteja fortemente relacionada à única vida que eu conheço. Me encantam muito as obras de alguns fotógrafos que conseguem essa aproximação com esse universo a ponto de capturar a essência, a luta, a simplicidade do que o povo da floresta é e vive, como o Sebastião Salgado, Pedro Martinelli, Araquém Alcântara. Essas obras fotográficas e filmes como Vidas Secas de Nelson Pereira, obras do Glauber, tudo se mistura um pouco no meu longa.
Em que este arquétipo implica?
A humildade diante da grandiosidade da floresta amazônica e dos seus rios é o que mantém os caboclos ribeirinhos e os indígenas vivos dentro da mata. E eu vejo que todos nós, como população, precisamos desenvolver mais esse aspecto para evitar a tragédia climática que estamos vendo acontecer. Saber respeitar, ouvir o que a natureza tem para nos dizer, até mesmo para fazer nascer um filme como este é o que nos torna parte dela. Esse não é apenas um filme gravado em uma locação na Amazônia — é um filme Amazônida.
Como é ter um filme feito a ponto de interferir no estabelecimento de um quilombo urbano?
O Quilombo Urbano de São Benedito está relacionado com um documentário que eu fiz em 2011 chamado 14 de janeiro - Terra, samba e santo, no qual eu retratei a história ancestral de moradores do bairro da Praça 14 de Janeiro, em Manaus. Durante um ano, eu pude conhecer, conviver e entrevistar mestres e mestras que guardavam vívidas as lembranças dos antepassados escravizados que vieram pra Manaus no início do século 19 após a abolição e que trouxeram toda a sua cultura que ainda é muito forte no lugar. Com o documentário, foi possível mostrar as manifestações religiosas, a culinária, a cultura e a forte presença e resistência negra naquele espaço. Com o falecimento dos mestres, o filme se tornou um dos documentos mais importantes, somado a outros, para ajudar a comprovar e reforçar aspectos para que o "barranco", como é carinhosamente chamado, pudesse estar apto a receber a chancela de Quilombo Urbano. Todas as vezes que eu ouço o nome "Quilombo Urbano de São Benedito", meu coração se alegra.
Quais as cores dominantes do teu novo filme?
Eu divido o filme em dois momentos: antes e depois da grande cheia. As duas partes refletem o que se passa dentro da personagem Vicente e da família. Num primeiro momento, cheio de esperança, ainda que os sinais demonstrem o que pode vir, e a segunda parte em que o fato consumado, a cheia do rio muito além do esperado, com todas as implicações, o joga para dentro de si, onde nada mais é possível fazer a não ser buscar equilíbrio e lutar junto, nunca contra quem dita as regras naquele ambiente: a natureza. Ao contrário daquela Amazônia colorida, exótica, de grandes sobrevoos pelas copas verdes, muito retratada, optei por mostrar predominantemente uma outra Amazônia, aquela que se esconde dentro das casas de quem verdadeiramente vive no lugar. A Amazônia cinza, cor de palha, de madeira velha molhada, das águas escuras ou barrentas dos igapós, tons que pudessem expressar a angústia de ser ao mesmo tempo filho e prisioneiro de um dos lugares mais exuberantes do planeta.
Como percebe o protagonismo da Amazônia; numa escala mundial?
É importante o protagonismo da Amazônia desde que isso se reverta em ações de proteção e desenvolvimento sustentável da floresta e, principalmente, melhoria da qualidade de vida para o povo daqui. Caboclos ribeirinhos e indígenas são as populações que mais protegem a floresta e os primeiros a sentir na pele os efeitos das mudanças climáticas e da falta de políticas públicas no maior Estado do país. E isso tem que mudar. Ano que vem acontece a COP 30 em Belém do Pará e precisamos urgentemente que as grandes nações, que vão estar presentes, também assumam a responsabilidade de proteger o que ainda existe de fauna, flora, rios. Para isso, é necessário muito investimento em ciência e tecnologia somados aos saberes dos povos da floresta que, há milênios, entendem que uma árvore tem muito mais valor em pé.
Quanto às cheias... Como vê as mudanças climáticas e o frenar delas?
Filha do Amazonas e da Amazônia, criada na beira do rio, acompanho com imensa tristeza essa tragédia acontecendo dentro de um dos biomas que mais sofre com as mudanças climáticas. E sendo parte dele, morremos junto também. Enchentes avassaladoras, seca extrema pelo segundo ano consecutivo, queimadas na floresta que aumentam ainda mais a sensação de que estamos realmente perto do ponto de não retorno. Parece quase impossível o crescimento de uma consciência coletiva para reverter o que está acontecendo. Eu como realizadora tento por meio da minha obra chamar a atenção, na forma poética que o meu filme traz, para o que está acontecendo. As vozes no meu filme se expressam de forma silenciosa. É preciso atenção para escutar. Não sei se isso é possível nos dias de hoje.
57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
No Cine Brasília (EQS 106/107), nesta quarta, às 21h, Enquanto o céu não me espera (longa), com ingressos a R$ 20. Exibição ainda dos curtas E assim aprendi a voar (de Antonio Fargoni, RR) e Mãe de ouro (de Maick Hannder, MG). A partir das 20h, na Cia Lábios da Lua (Gama), no Complexo Cultural de Planaltina e na Faculdade Estácio (Taguatinga — Pistão Sul), a mesma programação tem entrada franca.