O filme, ou melhor, os filmes nunca são os mesmos, mas o roteiro do festejo da sétima arte é cíclico no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro que, na 57ª edição, louva a memória de Vladimir Carvalho. Morto no mês passado, o cineasta rende nome para a sala de exibição do Cine Brasília (EQS 106/107) — abrigo indissociável ao evento que ocorre desde 1965 na capital, e com abertura na noite de hoje (a partir das 20h). "A ideia da homenagem não partiu apenas da Secretaria de Cultura, muitas, mas muitas mesmo, pessoas, pediram, e é algo mais do que justo: não houve nenhuma resistência ao nome dele. Esperamos que seja perpetuado, a partir da iniciativa, o nome dele, sua obra e seu legado", avaliou o secretário de Cultura do DF Claudio Abrantes.
Autor do filme Criaturas da mente, a ser exibido (fora de competição) na noite de hoje, o pernambucano Marcelo Gomes traz um conteúdo que mescla cinema e a formatação de sonhos. "Tudo no cinema tem a ver com o sonho. Com fronteiras próximas, há elementos que se misturam" observa o mesmo diretor de Cinema, aspirinas e urubus, sempre atento à relação orgânica e à inquietação da mente que, mesmo descansando, interfere no cotidiano de muitos.
Lembrando do personagem de Humphrey Bogart, em O falcão maltês (1941), que exalta "os materiais dos quais os sonhos são feitos", dá para tatear os caminhos do filme Criaturas da mente, a partir de um personagem central do documentário: o neurocientista Sidarta Ribeiro. "Os sonhos e do que que eles são feitos, depende. Para pessoas que não prestam atenção neles, não passam de fragmentos de memórias encadeadas de maneira frequentemente incompreensíveis. Para quem tem cuidado com o sono e com o sonho, eles podem trazer uma corrente de memórias extremamente úteis para adaptação e sobrevivência. Acredito nessa possibilidade. Os sonhos são um portal de conexão espiritual, e se esse mundo espiritual está no cérebro ou fora, é uma questão secundária. Mas ele existe para quem crê, e sonhos são portais", ressalta Sidarta. Nascido e criado em Brasília, de onde saiu em 1994, Sidarta volta para a capital, com entusiasmo: "Amo Brasília, amo o céu, a água, as cachoeiras, e amo o sonho de uma República que Brasília encarna".
Fundadora, há 40 anos, do Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, a atriz Zezé Motta (confira entrevista) estará hoje no evento, em lugar de destaque. Premiada com o Candango de melhor atriz, em 1976, por Xica da Silva, Zezé receberá nova homenagem, desta vez pelo conjunto da obra. Com lembranças póstumas, o cineasta Pedro Anísio e a atriz e produtora Mallú Moraes também serão homenageados. Amanhã, a partir das 17h30, o Cine Brasília acolherá outras homenagens: a medalha Paulo Emílio e o prêmio Leila Diniz; o primeira a ser outorgada ao professor e ensaísta João Luiz Vieira, e o segundo reservado à atuante produtora Sara Silveira, que proporcionou bases para sucessos como Bicho de sete cabeças.
Para além da presença na tradicional Mostra Brasília (que traz até mesmo o documentário em disputa por indicação ao Oscar, Tesouro Natterer, de Renato Barbieri), o cinema brasiliense estará representado na mostra competitiva, com o longa Pacto da viola (de Guilherme Bacalhao) e os curtas Inflamável (Rafael Ribeiro Gontijo), Confluências (Dácia Ibiapina) e Descamar (Nicolau). Aspectos de inovação atravessam os 12 curtas destacados para a competitiva. "Neles a gente tem uma noção mais ampla ainda do estabelecimento da diversidade. Nisso veio a responsabilidade de, entre quase 1.000 inscritos, trazer 12 para a seleção, e com a visibilidade de um conjunto. No quadro, desponta o uso de animação e se contemplam expressões de filmes de regiões do Brasil que não estão na mostra de longas", comenta o diretor artístico Eduardo Valente. Ele aposta na renovação temática e em formas de expressão que gerem surpresa.
Na seara de longas, um dos destaques entre seis títulos é a participação do veterano Ruy Guerra, aos 93 anos. "A submissão do filme A fúria (codirigido por Luciana Mazzotti) ao processo seletivo aponta para a confiança do Ruy na curadoria e no ambiente cinematográfico, legítimo e aquecido do Festival de Brasília. Ele é um diretor de referência com histórico absolutamente importante na composição da história do cinema brasileiro. Traz o desfecho, muito aguardado, de uma trilogia iniciada com Os fuzis (1964). Temos as melhores expectativas, ainda para o debate, seguinte ao dia da exibição (6/12)", observa a diretora geral Sara Rocha.
A grande questão no norte da curadoria do evento foi lembrar do DNA do festival: uma origem que tem relação com misturas de interesse pela discussão da linguagem do cinema e da condição geral do nosso país. "Quando se propõe uma mostra chamada Formação dos Brasis, paralela, não é por acaso. No conjunto de quatro filmes se traz aspectos culturais, sociais e políticos que fazem a gente olhar para para o país que a gente tem gerado e gerido. Nas mostras paralelas, o espectador não se afasta dos pontos centrais", explica Eduardo Valente. Novidades não faltam ao pacote de longas em disputa. "Há uma realizadora estreante, Christiane Garcia, com o filme Enquanto o céu não me espera, e ainda temos realizadores indígenas (em Yõg Ãtak), com carreira, mas que estão tendo, pela primeira vez, uma visibilidade numa vitrine do tamanho da competição de Brasília", ressalta Valente.
Entrevista // Zezé Motta, atriz e cantora
O que o filme Xica da Silva te deu? Como vê a real Xica que te serviu de inspiração?
Me deu tudo: Xica pode ser considerada a minha fada madrinha. Ela me projetou pro mundo, me fez ficar conhecida em diversos países. O papel que mais marcou a minha carreira foi, sem dúvida, Xica da Silva. Conheci 16 países por causa dela. O filme foi um divisor de águas em minha vida. Eu já havia feito muitos trabalhos, mas nada com tanta visibilidade. O Cacá Diegues (diretor) ficou sabendo de mim, por meio de amigos em comum. Nelson Motta, Marieta Severo e Chico Buarque chegavam pra ele e diziam: 'Chama a Zezé'. Consegui fazer o teste e, um tempo depois, recebi uma ligação dizendo que havia sido aprovada. Quase desmaiei. Quando o filme estourou, eu estava fazendo uma comédia com a Eva Todor, Rendez-vous. Era um papel minúsculo, de empregada, claro. Entrava muda, saía calada. Antes do filme as pessoas iam ao teatro para ver a Eva. Depois, passaram a ir para me ver também.
Qual a música que mais te dá prazer cantar e alguma te exige muito? É possível exaltar teus pais na criação diferenciada, que te resultou artista?
Se sou cantora é graças ao meu pai, ele teve um papel importantíssimo na minha formação. Quanto às músicas é complicado. É muito difícil responder isso, pois se está no meu repertório é porque me da prazer de certa forma. No momento, por exemplo, eu gosto muito de cantar no show que tenho feito atualmente Coração Vagabundo — Zezé canta Caetano, a música Você é linda, me emociona. Como uso meu lado atriz em meus shows, quando entra a canção O ciúme, eu meio que vivo aquela história.
Como vê a superação de negros (na tevê) se descolarem dos papéis de empregados?
Um trabalho que foi fruto de uma luta e começou lá atrás. Tenho muito orgulho de ser pioneira a falar e denunciar isso.
O preconceito racial e machista ainda assola o país? Como se dá teu engajamento contra isso?
Com certeza, o racismo está ai, escrachado, era velado, agora não mais. De que forma sou engajada? Com o meu trabalho. Trato disso, por ele, há 55 anos.
Você se sente uma artista valorizada?
Hoje sim, me sinto valorizada, mas como mulher preta, de 80 anos, não ganho igual a um homem branco de 80 anos. A mulher ganha ainda menos do que o homem, e a mulher preta ganha menos que o homem e a mulher branca. Mas nem tudo é dinheiro e me sinto muito valorizada, com essa homenagem (no Festival), por exemplo. Não posso reclamar da vida.
57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Hoje, no Cine Brasília, a partir das 20h, com entrada franca, mediante retirada prévia de ingressos (limitados) na bilheteria. Distribuição a partir das 14h. A partir das 20h, na Cia Lábios da Lua (Gama), no Complexo Cultural de Planaltina e na Faculdade Estácio (Taguatinga — Pistão Sul), a exibição do filme Criaturas da mente tem entrada franca.