O ano ainda não terminou, mas falta pouco e é possível dizer que 2024 foi feliz para o mercado editorial consagrado a livros sobre a herança e a presença africana na cultura brasileira. E como, finalmente e oficialmente, o Dia da Consciência Negra ganhou reconhecimento institucional e tornou-se feriado nacional, vale comemorar com uma bela lista de leitura para aprofundar o conhecimento sobre um leque de temas que fazem parte da construção da identidade de todos os brasileiros. O Diversão&Arte preparou uma lista dos lançamentos mais recentes. Não há ficção nessa lista, mas há muitos outros gêneros: ensaio, reportagem, biografia, filosofia e até teoria política. Agora, é sentar, escolher e ler.
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Resistência contemporânea
Os jornalistas Marina Lourenço e Tayguara Ribeiro visitaram mais de 20 comunidades distribuídas por todo o Brasil para escrever O grito dos quilombos, uma investigação surpreendente sobre os herdeiros de escravizados que lutaram e resistiram. Quilombos urbanos em Florianópolis, no Rio de Janeiro e em São Paulo, outros mais isolados no Maranhão, outros que lutam para manter o reconhecimento e o direito às terras foram visitados pela dupla. "Nesse contato direto com essas comunidades, percebemos uma coisa que deveria ser óbvia, mas muitas vezes não é: essas comunidades não são um bloco homogêneo, como nenhuma comunidade é", explica Tayguara. "São comunidades que têm seus pontos de ligação, uma origem ligada a um passado da escravidão. E a luta pela terra é uma coisa que une essas comunidades."
O livro dá voz aos quilombolas e parte, principalmente, de entrevistas para mostrar como vivem essas comunidades e quais são os desafios de manter viva a herança africana e o direito à terra. "O maior desafio foi contar histórias desconhecidas para muita gente sem transformar isso num texto acadêmico e sem cair para a ficção, sendo muito fiel aos fatos. Tudo que está ali é extremamente real", conta Marina.
O grito dos quilombos — Histórias de resistência de um Brasil silenciado
De Marina Lourenço e
Tayguara Ribeiro. Todavia, 262 páginas. R$ 84,90
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A volta
Carlos Fonseca começou a escrever sobre os descendentes de escravizados que retornaram à África nos séculos 18 e 19 depois de sugerir ao Correio Braziliense uma reportagem para marcar a celebração dos 500 anos do descobrimento, em 1999. Para isso, ele esteve no Togo, Benin, na Nigéria e no Gana. Agora, depois de 25 anos e de outras muitas viagens à África, Fonseca decidiu transformar o material no livro Os retornados, uma enorme reportagem na qual acompanha os descendentes desses homens e mulheres que, depois de arrancados de suas terras e destruídos em um esquema brutal de exploração humana, conseguiram voltar à África. "É uma memória muito curta a do brasileiro sobre a escravidão. Tudo que está associado à história da escravidão sofre desses esquecimento. É importante que, nos últimos anos, a gente tenha tido essa produção, foi muito maior a produção nos últimos anos do que a produção somada de décadas", diz, ao reparar na quantidade de livros publicados nos últimos anos sobre a herança africana.
Os retornados reflete a pesquisa, iniciada na década de 1980, mas também um documentário produzido pelo autor e no qual ele entrevista muitos dos descendentes que estão na reportagem. "Optei por não ser um livro histórico, acadêmico, queria que fosse para um público mais amplo, então tentei fazer um livro com uma pegada mais de reportagem. Aproveitei, em cada capítulo, a história de um ou mais personagens e, através da história deles, fui contando a história do processo de retorno", diz.
Os retornados
De Carlos Fonseca. Record,
446 páginas. R$ 89,90
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Experiências
Com um tom mais testemunhal e menos histórico, As forças das falas negras — Relatos de vida é um conjunto de relatos pessoais sobre situações racistas vividas por intelectuais e professores. Organizado por Sonia Rosa, escritora, educadora, pedagoga e mestre em relações etno-raciais, o livro foi motivado por um post de Sinara Rúbia, diretora do Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (Muchab), nas redes sociais, após um episódio de racismo sofrido logo depois do isolamento exigido pela pandemia. "Ela relatou esses sentimentos, que provocaram outros sentimentos, muito legítimos e muito tristes das pessoas que recebem ataques racista, quer seja por um olhar, por palavras, por uma forma ou um gesto do próprio corpo. Isso gera um sentimento de dor e desconforto. E a Sinara relatou a tristeza de ter que viver, de novo, essa situação do racismo que ela já tinha até esquecido porque estava dentro de casa", conta Sônia.
Ela pediu então a 30 pessoas que relatassem situações semelhantes e falassem, principalmente, sobre esses sentimentos. "A força das falas negras tem o objetivo de ajudar o leitor a refletir sobre a presença do racismo na vida e nas vidas das pessoas negras, porque a pessoa branca até duvida que existe, mas existe, e o tempo todo", avisa a escritora. "Esse livro se propõe a ampliar o conhecimento do leitor para entender a dinâmica do racismo e não reproduzir. É um trabalho também educativo."
A força das falas negras
Organização: Sonia Rosa. Pallas, 176 páginas. R$ 48
Vidas que mudam mundos
Três biografias essenciais para pensar o impacto e a devastação causados pela segregação racial acabam de sair dos fornos das editoras brasileiras e merecem toda a atenção do leitor. Para começar pelo Brasil, vale mergulhar no perfil Lélia Gonzalez — Um retrato, assinado por Sueli Carneiro. Numa época em que não havia ações afirmativas, a determinação de Lélia foi fundamental para que estudasse filosofia e viesse a se tornar um dos maiores nomes do pensamento etno-racial no Brasil. É essa trajetória e seus bastidores que Sueli Carneiro narra ao contar a história dessa mulher que "desafiando o coro do destino", estudou e pensou o país a partir do viés violento imposto a uma parcela da população que, como ela dizia, estava "na lata de lixo da sociedade brasileira".
Um dos faróis do pensamento e da luta decolonial, Frantz Fanon foi um psiquiatra francês nascido na Martinica, intelectual, radical e também um soldado nos movimentos de libertação que se espalharam pela África e Caribe na primeira metade do século 20. Nome fundamental para compreender esses cenários, ele ganha agora uma biografia escrita pelo americano Adam Shatz, intitulada A clínica rebelde — Uma biografia de Frantz Fanon. Em um robusto compilado de quase 600 páginas. o autor detalha a vida, mas também dedica longos trechos a analisar as obras mais importantes de Fanon, especialmente Pele negra, máscaras brancas, um dos livros fundadores do pensamento do psiquiatra, que defendia o reconhecimento do negro pelas suas diferenças, e nunca a assimilação que minimiza identidades.
Ainda na seara das biografias, King — Uma vida, de Jonathan Eig, traz um retrato íntimo de Martin Luther King Jr. no qual o autor logo avisa: "King era um homem, não um santo. Roía as unhas (...)". Arquivos confidenciais recentemente liberados pela Casa Branca foram essenciais para a pesquisa que rendeu a Eig o Prêmio Pulitzer de 2024.
King: Uma vida
De Jonathan Eig. Tradução: Denise Bottman. Companhia das Letras, 606 páginas.
R$ 139,90
A clínica rebelde — Uma biografia de Frantz Fanon
De Adam Shatz. Tradução: Érika Nogueira Vieira. Todavia, 588 páginas.
R$ 109,90
Lélia Gonzalez — Um retrato
De Sueli Carneiro. Zahar, 124 páginas.
R$ 49,90
Estante
O contrato racial
» De Charles W. Mills. Tradução: Teófilo Reis e Breno Santos. Zahar, 228 páginas. R$ 79,90
Supremacia branca é o sistema político não nomeado que fez do mundo moderno o que ele é hoje", avisa Mills logo na introdução desse livro publicado originalmente em 1997 e que se tornou referência nos estudos de teoria política. Nascido em Londres e criado na Jamaica, Mills Mills é um dos primeiros a pensar uma teoria racial crítica e tem obra que trata das relações entre filosofia política e racismo.
Preconceito: uma história
» De Leandro Karnal e Luiz Estevam. Companhia das Letras, 382 páginas. R$ 79,90
O preconceito não é um fato da natureza, mas uma invenção social, e é isso que os autores procuram destrinchar ao longo deste livro, que investiga o tema desde a antiguidade até os dias atuais. "A realidade é múltipla. Qualquer outra visão é fantasia pura", avisam os autores.
Caixa-preta — Escrevendo a raça
» De Henry Louis Gates Jr.. Tradução: floresta. Companhia das Letras, 246 páginas. R$ 84,90
É sobre "a completa, risível e trágica arbitrariedade da construção racial nos Estados Unidos" que Henry Louis Gates Jr., professor da Universidade de Harvard e um dos nomes mais importantes nos estudos culturais afro-americanos contemporâneos, escreve neste ensaio. Caixa-preta é uma metáfora do racismo nos Estados Unidos e é da história desse país que o autor trata, mas muitas de suas considerações ecoam no mundo inteiro quando se observa como o racismo define as relações sociais.