Uma senhora octogenária, inconformada com a atuação do tráfico em um morro no Rio de Janeiro que ficava em frente ao seu apartamento, compra uma câmera para gravar o comércio e o consumo de drogas que passou a causar tumultos e tiroteios na sua vizinhança. Os registros tinham como intuito denunciar aquelas práticas às autoridades. Um tempo depois, as imagens gravadas de uma janela “protegida” apenas por persianas, param nas mãos do jornalista Fábio Gusmão, que fez o Brasil conhecer uma das lutas que Dona Vitória da Paz, apelido criado com ajuda de colegas jornalistas para garantir a segurança da idosa, teve de travar. Gusmão conversou com o Estado de Minas sobre o lançamento do livro e sobre a reportagem publicada em 2005.
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A denúncia de grupos criminosos que atuavam perto de onde ela morava, publicadas pelo jornal Extra, fez com que a senhora tivesse de entrar no Programa de Proteção a Testemunha e, durante anos, Vitória da Paz foi a única forma pela qual ela foi conhecida na mídia. Com a morte dela em 22 de fevereiro de 2023, aos 97 anos, a história da alagoana Joana Zeferino da Paz ganha novas edições, em livro – “Dona Vitória Joana da Paz” (Editora Planeta) –, e no filme “Vitória”, no qual é interpretada por Fernanda Montenegro, e tem previsão de estreia em março de 2025.
Incomodada com os tiros que adentravam seu apartamento e de outros moradores da localidade, Joana da Paz compra uma câmera em um tempo em que os celulares não costumavam ter essa função, para gravar a movimentação de traficantes e compradores na Ladeira do Tabajara, em Copacabana. Os registros revelam a rotina dos criminosos, que iam de mudanças nos locais de venda, as movimentações em caso de patrulhas das polícias, pagamento de suborno para agentes de segurança e até crianças consumindo cocaína.
Do momento em que as imagens chegam às mãos de Gusmão até a publicação da reportagem passam-se cerca de dois anos. Tempo necessário para estabelecer uma relação de confiança com Dona Joana da Paz, que já havia passado por uma vida com diversas provações, e para convencê-la de entrar no Programa de Proteção a Testemunha, condição inegociável para que sua história fosse publicada.
Em paralelo, a Justiça, também começava a realizar operações para prender algumas das pessoas que apareciam nas imagens. Gusmão e outras pessoas demonstravam preocupação de que, os detidos, ao verem as provas pudessem ordenar ações de coação contra a senhora que resistia à possibilidade de sair do imóvel.
Ao final da saga da idosa, a ação de filmar e denunciar o que acontecia no morro em frente à sua janela levou à condenação na Justiça de aproximadamente 30 pessoas, entre traficantes e policiais.
Leia a entrevista com Fábio Gusmão
Como essa história chegou até você?
R: Dona Joana era muito tachada de maluca (pelos policiais que recebiam frequentemente as denúncias dela). Pedi à polícia para ver os vídeos e eles colocaram numa televisão pequena de delegacia da época, com vídeo cassete, mas com volume baixo. Falei “legal”, até numa postura meio arrogante internamente, para o policial e disse que renderia uma matéria. Tinha umas imagens legais, mas para o Rio de Janeiro era mais uma matéria.
Peço (as imagens) para a Marina (Maggessi, inspetora de Polícia Civil na época), ela me enrola mais duas semanas, mas me entrega as fitas. Só pediu para não publicar e não falar para ninguém. Levo pra casa, esquento minha comida e dou o play. Quando começa a rodar e o som fica legal, eu larguei a comida e falei: “tô com a história da minha vida”. Ela começava a relatar o que estava acontecendo.
A Marina liga pra ela, faz a apresentação e eu vou à casa da dona Joana com o carro descaracterizado. Digo na portaria que sou sobrinho dela e a gente vai até à polícia falar da investigação. Depois, volto para deixar ela em casa e subo. Quando eu subi, que eu vi que era muito perto, a menos de 100 metros de distância. Era um milagre, porque às vezes ela se exaltava, nunca ter acontecido nada.
Ela tinha noção que estava fazendo um trabalho jornalístico e investigativo?
R: Ela não tinha noção de que estava fazendo o trabalho jornalístico. O que ela tinha noção é que estava fazendo o trabalho da polícia. Desde sempre ela tinha um histórico de ir pelos caminhos oficiais. Em 1995, em uma outra ocupação que teve lá, ela fez denúncias. Era muito atuante para que acabasse aquilo ali.
Ela tinha muita noção dos direitos dela e entendeu que a violência acabou depreciando o patrimônio dela e ela entrou na Justiça contra o Estado. Quando, no vaivém do processo, o coronel disse que ela mentia, porque ele fazia operações que não dão em nada, e que ela tinha de provar, ela comprou a câmera, parcelada, e começa a saga dela.
Quando reuniu uma quantidade de filmagens interessantes, entregou na Defensoria Pública, procurou a imprensa, entregou na TV e disso assim: “Eles não deram a reportagem, falaram que eu corro risco, mas eu não quero saber”. Ela era muito invocada.
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Ela começa a gravar depois de recorrer, várias vezes, às forças de segurança. Como ela enxergava o papel do Estado nessa situação?
R: Quando existe uma Dona Joana é a total falência do Estado em sua concepção básica. A gente entende que o Estado é formado para cumprir determinados deveres e a segurança pública é uma delas. O que ela fez é uma parte policial do trabalho de inteligência, que é identificar, ver o funcionamento, rotina, etc. Seriam meses de trabalho. Quando uma senhora de 79, 80 anos está filmando e identificando os bandidos, justamente uma parte do papel que o Estado deveria cumprir, é algo que está muito errado. A peregrinação dela vai provando que todo o sistema ligado à segurança pública, Ministério Público e Judiciário acabam sendo lentos demais.
Na primeira instância, o processo dela estava a passos lentos. Uma idosa com a Defensoria Pública numa ação contra o Estado do Rio de Janeiro, com pedido de indenização pela depreciação de um imóvel dela. Tenta PM, delegacia, disque-denúncia, e não vê resultado. Procura a Defensoria para entrar com uma ação. O processo começa a se arrastar. Em nenhum momento, o juiz da Vara da Fazenda Pública pede para extrair peças para mandar para corregedoria para investigar se os policiais estão prevaricando ou não. Ou seja, é uma falha sistêmica que ela sozinha consegue provar.
Depois que a reportagem é publicada, ela ganha em primeira instância. Aí, vem o resultado em segunda instância e deixa ela muito frustrada, revoltada, porque ela perde por 3 a 0. Se ela fosse uma cidadã que tivesse sem gratuidade, ela teria que pagar as custas.
Como está a Ladeira do Tabajara hoje?
R: Hoje o tráfico voltou. No dia seguinte à publicação da matéria, houve uma operação, mas a polícia não ocupou. Depois, a polícia fez mais operações, aquilo dá uma arrefecida, criam um Posto de Policiamento Comunitário (PPC) com o nome fictício dela. Depois vem um posto de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) e, durante quase dois anos, fica com tráfico quase não existindo. O programa (UPP) fez água e ali voltou a ter tráfico, tem tiroteio de vez em quando.
Teve alguma mudança na forma de repressão da polícia?
R: Os policiais passaram a ter maior ostensividade no patrulhamento e nas apreensões, mas o tráfico mudou a forma. Ao invés de ficar na Ladeira dos Tabajaras, eles iam para o Morro Dona Marta, que dava para os fundos e era a mesma quadrilha. De fato, isso melhora durante vários meses, mas melhorar de verdade é de uma forma permanente.
A preocupação é que aquilo pudesse inspirar as pessoas a terem a mesma iniciativa dela. Imagina, ela não precisaria mudar de lugar, se todo mundo, no dia seguinte, quando a operação estava na rua, a matéria estava saindo e ela estava entrando no programa de proteção, todo mundo fosse para a janela com uma câmera. A imprensa fotografando mais de mil apartamentos, todo mundo com uma filmadora na mão, olha o poder disso.
Ela não precisaria sair, eles não matam mil. A grande lição que ela deixa é que se tem coragem, força, a gente consegue movimentar. A iniciativa e a história dela é que são poderosas. Seria um recado para os criminosos. “Ela saiu, mas estamos aqui vigilantes”.
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