O Cena Contemporânea está de volta com um total de 20 espetáculos, entre peças de teatro e shows, que fazem um panorama da produção recente de Brasília e do Brasil e ainda trazem alguns destaques da dramaturgia internacional. Com início nesta terça-feira (5/11), o festival vai ocupar, durante 13 dias, o Espaço Cultural Renato Russo, o Teatro dos Bancários, o Centro Cultural da ADUnB e o Cine Brasília, além das unidades do Sesc na 504 Sul, em Taguatinga e em Ceilândia.
Este ano, o idealizador do projeto, Guilherme Reis, dividiu a curadoria com Daniele Sampaio para a escolha dos espetáculos. "Essa edição tem a cara da coerência com a própria história", avisa Reis. "O Cena sempre foi bastante diverso e nunca procurou determinar um tipo de teatro, um gênero ou uma forma de fazer teatro e, sim, mostrar quão rica é a diversidade da produção teatral. A gente conseguiu unir um conjunto de espetáculo que mostra no palco um trabalho poderoso, diverso, que toca em temas fundamentais e sempre de uma forma poética, instigadora e bonita de se ver", destaca.
A abertura será realizada com Deserto, o projeto monumental de Luiz Felipe Reis para a obra do escritor chileno Roberto Bolaño. Com sessões no Teatro dos Bancários, a peça traz para o palco os últimos anos de vida do autor, enquanto tentava concluir o romance 2666, um dos grandes livros da literatura contemporânea latino-americana. A obra foi publicada um ano após a morte de Bolaño, em 2004. "A peça é como se a gente imaginasse aquele filme que dizem que se passa em nossa tela mental entre a consciência de que se vai morrer e o fato da morte em si, um filme fragmentado, acidentado, com as memórias, os acontecimentos transformadores", avisa Luiz Felipe, que fez a dramaturgia em forma de monólogo encenado pelo ator Renato Livera.
A proposta, diz o diretor, é fazer um grande mergulho na obra ficcional do Bolaño, incluindo outras searas além dos romances, como as crônicas, as notas, as entrevistas, as conferências e os poemas. "É um mergulho no imaginário desse autor, tentando entender quais eram as forças de fundo, as questões existenciais, a estética, as políticas que impulsionavam a escrita dele", explica.
Entre os destaques da programação também está o monólogo Não me entrego, não!, de Othon Bastos. Com a famosa frase dita por Corisco em Deus e o diabo na terra do sol, Bastos, que viveu o personagem dirigido por Glauber Rocha, revisita a própria trajetória. São 91 anos de vida e 70 de carreira, formatados em 90 minutos com dramaturgia e direção de Flávio Marinho. "Se Deus me deu esse talento, essa capacidade de interpretar, eu não posso ficar com isso trancado dentro de mim. Eu tenho que dividir com outras pessoas. Dizer 'olha, eu sou assim, por isso, por reflexo disso e ainda por aquilo...'", diz o ator. "Na minha peça, eu até brinco que parece que eu sou um mascate. Estou mostrando as coisas que eu tenho para dar e vender, então viro um mascate de mim mesmo. Eu não guardo coisas para mim. Não quero me trancar em castelos."
Ainda da esfera nacional, o Cena Contemporânea traz Nzinga, uma história poderosa sobre uma rainha angolana do século 18, e o laureado Azira'i, que rendeu o Prêmio Shell de melhor atriz, este ano, a Zahy Tentehar. Em Nzinga, Aysha Nascimento vive a soberana que, em parceria com o irmão, lutou contra a dominação portuguesa para proteger o Reino do Dongo. Uma pesquisa que envolveu viagens a Angola, conversas com historiadores africanos e até com uma rainha contemporânea, além de muita leitura, orientou a produção.
"A Nzinga serve para falar sobre a ética comunitária, a irmandade, esse conceito africano de juntar a comunidade e de ter o poder de forma distribuída, sem tantas hierarquias", explica Aysha. "A gente fez um mergulho nas culturas bantu para entender essa filosofia, esse pensamento. É uma filosofia de vida que a gente queria entender um pouco mais, como gerir uma comunidade a partir desse ponto de vista, então mergulhamos em algumas filosofias bantu e o que seria uma proposta para uma possível nova sociedade brasileira."
Panorama local
Da produção do Distrito Federal, o Cena traz alguns dos espetáculos que foram destaque este ano e em 2023. A ancestralidade é tema de Memória matriz, da Cia. Lumiato, que traz a relação entre mãe e filha, e de Danúbio, o espetáculo de Jonathan Andrade sobre a dificuldade de construir uma narrativa referente às origens das famílias descendentes de africanos. "Em Danúbio, a gente tem um protagonista que conversa com ele mesmo. E temos o escancaramento dessa psique do protagonista, tão exposto às dores, feridas e memórias, a tudo aquilo que ele resolve e não resolve, tudo o que é e não é", avisa o diretor. "Ao mesmo tempo, tem diálogo dele com vozes ancestrais, com outras presenças, cujo idioma ele nem entende, mas que está no corpo dele. É um espetáculo que vai brincar com esse corpo preto cidadão existencial de uma maneira muito bonita. Tem dor, tem ferida, mas também tem amor, beleza."
Também de Brasília, a programação traz Alguém vai morrer!, das Piores do Mundo; Júpiter e a Gaivota — É impossível viver sem teatro, inspiração da S.A.I. para o clássico de Tchekhov; e Manifesto do eu só, da Companhia dos Dois Tempos. Me escuta, o espetáculo em que Miriam Virna traz para a cena histórias reais, também está no festival; além de A escultura, criação poética de Adriano Guimarães sobre a trajetória da coreógrafa e bailarina Yara de Cunto, 85 anos. "Acho que o teatro local é muito produtivo, e o Cena sempre fez o apanhado da produção dos últimos tempos, de um ou dois anos, para incluir na programação o destaque e as coisas bacanas que Brasília vem produzindo", diz Guilherme Reis.