"A fase brasiliense do cinema de Vladimir Carvalho: um projeto de história e memória popular para Brasília" — impresso assim, o título da tese de mestrado do paulista André Manfrim é revelador dos temas indissociáveis à carreira do mais importante cineasta do DF. Autor de clássicos como O país de São Saruê (1971), Vestibular 70 e Conterrâneos velhos de guerra (1991), o documentarista paraibano prezava o contato com a esfera popular e aliava a dimensão histórica à memória que repassava, a cada filme feito.
Contemporâneo e antenado, o diretor morto há nove dias, prospectava dados e fatos, nem que fossem de tempos imemoriais. "É muito curioso notar como os interesses de Vladimir caminharam junto com a história política e cultural do país. Como ele próprio notou, Vladimir foi também, à sua maneira, um migrante nordestino que ajudou a construir Brasília", pontua o estudioso. Com o imaginário tomado pela força do documentário, o pesquisador de cinema André Manfrim teve formação em audiovisual, sendo ainda historiador pela USP.
Aos 34 anos, ele lembra que o tema dos conjuntos habitacionais e das formas de moradia popular, dentro de uma lógica de produção do Estado, o aproximaram de Vladimir, espectador da série Habitação Social — Projetos de um Brasil, que André dirigiu, lançada em 2018. Ainda na direção, realizou Retratos de Piratininga, curta-metragem exibido na edição passada do festival É Tudo Verdade. O filme também ampliou a amizade com Vladimir, cuja obra estudou por três anos e que renderam 266 páginas de dissertação. "Conversamos muito por telefone, e tive acesso ao acervo dele (no Cinememória) numa passagem por Brasília para realizar a pesquisa. Mandei o texto depois de concluído, e ele se mostrou muito entusiasmado. A intenção agora é publicar o texto em livro", comenta o estudioso.
Enquanto prepara o documentário Imagens da rua em três atos, sobre as Jornadas de Junho de 2013, na sequência do filme anterior, no qual tratou do centro velho de São Paulo, André dá uma pausa para falar de Brasília e da fundação dos ecos da visão do mestre Vladimir Carvalho. "A obra dele acompanhou de perto a modernização brasileira ocorrida nestes 60 anos: o processo de migração para as grandes cidades, nossa urbanização repleta de problemas, a adaptação do mundo rural ao mundo das metrópoles etc. Penso que esse é um dos grandes legados de sua obra quando vista em conjunto", define.
Entrevista // André Manfrim, cineasta e historiador
Qual a relevância de Vladimir Carvalho ao construir uma história de Brasília?
Por muito tempo a imagem de Brasília produzida por seus idealizadores sobreviveu sem maiores tensões ou questionamentos. É preciso lembrar que a capital foi pensada desde o início como um projeto de "monumentalização": uma cidade que indicava um futuro moderno para o país, mas que também narraria sua própria história. É por isso que Brasília foi filmada, fotografada e divulgada por todo o país antes mesmo de existir, por meio dos cinejornais e do fotojornalismo que registraram as obras e inaugurações. Juscelino, Niemeyer e Lucio Costa produziram uma série de mitos de fundação para a cidade modernista, mobilizando especialmente o cinema e o audiovisual.
Como a obra do cineasta foi pioneira?
O cinema do Vladimir foi pioneiro ao retratar uma outra dimensão da história e da memória de Brasília, que até os anos 1980 ficara encoberta. Os filmes dele, o Conterrâneos velhos de guerra (1991) mas também os curtas, mostram uma Brasília operária, dos de baixo. Revelam os episódios de violência durante a construção e constroem uma memória popular, fragmentada, oral, que é distinta da memória monumentalizada operada pelos modernistas e pelos agentes de governo. Nesse sentido, a obra do Vladimir é fundamental. A agenda que ele propôs foi depois estudada pela pesquisa historiográfica, mas é um caso em que o cinema apontou leituras históricas que depois se consolidaram em livros, teses e artigos científicos. E isso é muito interessante. Vladimir foi um verdadeiro documentarista-historiador de Brasília atuando por meio das imagens e sons de seus filmes.
Qual a diferença da imagem do que o Vladimir projeta, junto as que Oscar Niemeyer e Lucio Costa trouxeram sobre Brasília?
O que houve foi uma espécie de aliança entre os arquitetos modernistas e um projeto de Estado capitaneado por Juscelino Kubitscheck. Essa aliança se manteve no plano da memória social. Por causa disso, a memória modernista de Brasília é muito colada à memória de viés oficial, de governo. O que o Vladimir fez desde o seu primeiro filme sobre Brasília (Brasília segundo Feldman, de 1979) foi questionar essa narrativa, confrontando-a com outra, com uma espécie de avesso da moeda. Neste curta, temos um embate entre o Athos Bulcão e o operário Luiz Perseghini (personagem de filme codirigido por Sérgio Moriconi), que conta, na entrevista para o cineasta, a respeito da chacina ocorrida no alojamento da construtora Pacheco Fernandes Dantas em 1959. Em "Conterrâneos", o embate principal é com Oscar Niemeyer. Numa cena muito conhecida, o arquiteto diz não saber sobre o episódio da morte de trabalhadores. Niemeyer está defendendo uma memória e Vladimir a está confrontando. O interessante é que hoje temos claro que a construção de Brasília foi marcada por violências e traumas, mas Vladimir teve a sensibilidade de perceber e registrar isso num momento inicial.
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Numa das obras (Brasília segundo Feldman), estruturalmente, ele se apoia em imagens de terceiro (o designer Eugene Feldman). Explique esta apropriação e como Vladimir honrou este material alheio…
Feldman é o primeiro filme do que chamei de "fase brasiliense" do cinema de Vladimir, ou seja, os filmes sobre Brasília. É o que hoje chamamos de filme de found footage (material encontrado), ou filme de compilação. Isso porque o material original foi filmado pelo designer estadunidense Eugene Feldman, em visita aos canteiros de obra de Brasília em 1959. É um material precioso, pois Brasília foi muito filmada com objetivos institucionais, mas não temos muitos registros como este: privados, domésticos, quase um diário de viagem de um estrangeiro que conhecia o Brasil.
Quando essas imagens chegaram a Vladimir?
Chegaram às mãos do Vladimir no fim dos anos 1970 e ele organizou o filme por meio de uma engenharia inventiva e contundente. Estas imagens foram exibidas para dois personagens: Athos Bulcão, o conhecido artista plástico modernista; e Luiz Perseghini, um operário militante ligado ao PCB. As entrevistas são usadas em off (não vemos os depoentes) e viram uma espécie de dupla narração para o filme. Vendo as imagens de Feldman de 20 anos antes, os testemunhos de um e de outro são opostos. Bulcão defende a Brasília heroica enquanto Perseghini denuncia uma série de violências. De novo, trata-se de uma disputa no plano da memória e tendo a imagem cinematográfica como disparador. Vale dizer também que, em Conterrâneos, Vladimir utiliza na montagem imagens produzidas por ele próprio ao longo de 18 anos. É uma espécie de found footage autoempreendido, que mobiliza o estoque de imagens que o cineasta havia coletado naquelas duas décadas. Vladimir produziu uma verdadeira coleção de imagens que retratam 20 anos de Brasília (Plano Piloto e periferias), e elas estão organizadas em Conterrâneos velhos de guerra, filme síntese do balanço histórico que Vladimir empreendeu sobre a capital. Isso também faz do filme uma obra singular do documentário brasileiro.
A fase brasiliense no título do teu mestrado intriga. Conhece todos os outros filmes dele? Em que te surpreendem?
Vladimir teve uma fase "nordestina", que poderíamos caracterizar como "nacional-popular", porque dialoga com os interesses desse campo da cultura brasileira, muito forte nos anos 1960. Filmes como Romeiros da guia, O país de São Saruê e Incelência para um trem de ferro são filmes preocupados com as raízes do Brasil, na linha dos intérpretes clássicos como Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. São filmes que olham para o sertão nordestino buscando a matriz do Brasil de então, muito na lógica de época que via o "subdesenvolvimento" como herdeiro da "condição colonial". Outra fase de sua trajetória é aquela em que Vladimir percorreu os arredores do DF, registrando as culturas tradicionais da região, contrariando a ideia de que a construção de Brasília havia se dado sobre uma página em branco, um território despovoado, o que não é verdade. Quem estudou esse assunto foi a pesquisadora goiana Aline Carrijo, no Departamento de História da USP. Durante a distensão política do regime militar, Vladimir fez filmes biográficos sobre figuras do mundo político, acompanhando os ventos cívicos e politizados que marcaram a sociedade brasileira dos anos 1980.
É muito comprovada a morte dos candangos ao longo da construção da cidade? As provas dos filmes são transparentes e incontestáveis?
Não sabemos muitos detalhes do episódio ocorrido no sábado de carnaval de 1959. Essencialmente, as fontes são os testemunhos de trabalhadores que o Vladimir conseguiu colher entre os anos 1970 e 1980, anos depois do ocorrido. Esse fato, por si só, transforma Conterrâneos velhos de guerra em um filme-documento da história de Brasília. Nesse dia, no alojamento da construtora Pacheco Fernandes Dantas — uma das empreiteiras responsáveis pelas obras — houve uma revolta de operários por conta de alimentação inadequada, carne estragada. A situação escalou e a Guarda Especial de Brasília foi acionada, uma espécie de corpo policial de Goiás que havia sido cedida à Novacap. Foram esses agentes de segurança que fuzilaram o alojamento, matando um número até hoje não conhecido de trabalhadores. Os relatos divergem sobre os números, mas convergem em apontar que caminhões basculantes enterraram os corpos em valas comuns. À época, um ou outro jornal de oposição a JK noticiou o ocorrido, mas o massacre ficou acobertado até os anos 1980. Vejo os testemunhos de "Conterrâneos" como narrativas traumáticas, como aquelas que ajudaram a narrar determinados episódios de Holocausto na Europa pós-guerra. É o caso da entrevista de Dona Suzana em "Conterrâneos", uma lavadeira que não pode devolver as roupas que tinha lavado uma vez que os seus donos haviam morrido no massacre.
Qual era a relação afetiva de Vladimir Carvalho com os filmes estudados? Algum bastidor dele foi compartilhado?
Nas últimas conversas que tive com Vladimir por telefone, poucos meses atrás, ele havia acabado de ler minha pesquisa e estava muito entusiasmado com ela. Ele estava satisfeito que Brasília segundo Feldman tivesse sido observado como um filme importante, e se ressentia de não ter uma cópia melhor do filme disponível. Penso que vale batalhar por um restauro deste filme, que é hoje uma peça importante para compreendermos a história de Brasília. Especialmente em um momento como agora em que o cinema brasileiro tem conseguido restaurar algumas de suas obras com grande qualidade, renovando o interesse por filmes fundamentais, mas que circularam pouco. Vladimir também fez questão de me dizer que achava Pedra da riqueza, um curta de 1975, um de seus filmes mais importantes. Eu concordo, e acrescento que é um filme importante para história do documentário brasileiro. Naquele momento se faziam críticas ao uso da voz narradora pelo documentário brasileiro. A alegação era que a "locução" dirigia excessivamente o sentido dos filmes. Como uma espécie de resposta a essa avaliação, Vladimir nesse filme usava o mesmo recurso que mobilizou anos depois em "Feldman": seus personagens assistiam determinadas imagens projetadas, e os depoimentos se tornavam locuções, vozes off, "sobre" as imagens. Para mim, este é um exemplo de como Vladimir caminhou junto com a história do documentário brasileiro, muitas vezes na vanguarda, propondo caminhos estéticos, inovando em forma e temas.