Cinema

Cine Brasília recebe o diretor Pedro Freire para sessão especial de Malu

Um dos grandes filmes nacionais do ano será acompanhado de um debate com o diretor e a atriz Carol Duarte. Ao Correio, Pedro compartilha o processo de criação do longa

Cena do filme Malu -  (crédito: Divulgação)
Cena do filme Malu - (crédito: Divulgação)

O Cine Brasília recebe uma sessão especial com debate do filme brasileiro Malu, o primeiro longa-metragem do diretor Pedro Freira, que estará no debate ao lado da atriz Carol Duarte. A sessão terá ingressos promocionais no valor de R$ 5 e terá início às 16h.

Malu é um dos grandes filmes nacionais do ano. O longa conta a história de Malu, atriz inconstante que vive com sua mãe, uma mulher conservadora, no Rio de Janeiro nos anos 1990. A narrativa relata um ciclo de traumas e violências nas relações entre Malu, sua mãe e sua filha, que vai visitá-las. O filme, que já é emotivo, ganha uma camada a mais quando se descobre que o diretor, Pedro Freire, é filho da atriz Malu Rocha, inspiração para o filme.

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A idealização do filme teve início no velório de Malu Rocha, em 2013. Ao Correio, o diretor conta que por ser uma atriz de teatro, ele e sua irmã decidiram fazer um velório no Teatro Oficina, onde ela iniciou sua carreira dramatúrgica. No velório, Pedro decidiu que seu primeiro longa-metragem seria sobre sua mãe. “Fui chamado para dirigir três longas-metragens antes desse, filmes comerciais, não tinha nada de pessoal, mas me daria muito dinheiro. Foi uma decisão muito difícil, mas eu decidi não fazer porque eu queria que o meu primeiro longa-metragem fosse um filme meu, pessoal e da história da minha mãe”, compartilha Pedro.

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Ao Correio, Pedro Freire comenta sobre a produção, sobre as memórias que colocou no filme e os desafios da criação de uma história tão pessoal.

Entrevista // Pedro Freire

O quanto do filme você tirou das suas memórias?

A maior parte do filme é baseada em memórias. Quase tudo que acontece no filme aconteceu de alguma forma na vida real, mas é claro que toda memória é ficção. Nós estamos recontando a história ficcionalizada na nossa cabeça, então é um filme de ficção, mas muito baseado em fatos reais. Eu tomei algumas liberdades, por exemplo, tem muito de mim e da minha irmã na personagem Joana. A Joana é uma personagem que é uma mistura de Pedro e Isadora. Eu decidi fazer isso porque eu queria concentrar numa filha só, não queria ter dois filhos, e queria que fosse uma filha mulher, para ter três gerações de mulheres, mas não queria que fosse a minha irmã. Em algum momento eu pensei em chamar essa personagem de Isadora, mas eu não queria que acontecesse com a personagem só o que aconteceu com a minha irmã, eu queria poder botar coisas que aconteceram comigo também. Você também escreve o roteiro do filme.

Como foi a criação deste roteiro? O que era essencial?

A minha primeira parte do trabalho foi botar no papel todas as memórias que eu tinha da minha mãe, de tudo que aconteceu com ela, as histórias do passado dela, tudo que aconteceu com ela, comigo e com a minha irmã. Queria botar também no papel o jeito dela, o jeito dela falar é muito importante para mim. Nos meus roteiros eu sempre dou muita atenção para o jeito das pessoas falarem, os diálogos são muito importantes nos meus filmes. Então o jeito dela falar, os palavrões que ela usava, as gírias que ela usava, a forma dela se expressar, o jeito dela pensar o mundo e a geração dela. Comecei a estudar um pouco a geração dela, a geração hippie. Ela era hippie, ativista política, lutou contra a ditadura. Comecei a ler muito sobre os anos 70, sobre os artistas dos anos 70 que lutaram contra a ditadura, que foram presos, torturados, exilados, mortos. Em algum momento, comecei a pedir também para minha irmã me contar memórias dela, para eu poder juntar no filme. Esse processo foi muito interessante, mas muito extenso. Eu tinha muitas memórias, muito material. As coisas que interessavam para o filme, para contar uma história da Malu, eu deixava no papel. E as coisas que não interessavam para o filme, eu separava num outro arquivo para levar para a minha analista. Eu comecei a entender que eu não podia fazer um filme para mim, para a minha analista, um filme de autocura. Eu tinha que fazer um filme que, claro, seria muito pessoal, mas que fosse para contar a história da Malu para as pessoas, um filme para o público. Não é porque é um filme de arte que não é um filme pensando no público. Sempre tem que ser, eu acho. Porque você está fazendo esse filme para as pessoas irem ver, não é para você ficar sozinho na sala de cinema revendo o seu próprio filme.Então eu entendi isso, que o meu objetivo não podia ser a autocura, essa autocura até acabou acontecendo, mas acabou acontecendo como uma consequência, não como um objetivo. Escrevi dez versões desse roteiro, todas às dez versões eu fui mostrando para amigos e familiares, e consultores também de roteiro, sendo muito importantes, porque como é uma coisa muito pessoal, eu precisava de gente de fora, para me mostrar o que eu estava fazendo.

O que tem de especial e desafiador em retratar a história de alguém que você possui uma relação afetiva?

É muito desafiador porque é uma pessoa que foi muito importante na minha vida, é claro que mãe sempre é importante na vida de todo mundo, mas a minha mãe particularmente teve uma relação muito intensa comigo. Ela era muito intensa nas coisas boas e nas coisas ruins. Ela era muito intensa ao gritar, berrar, jogar copo na parede, ter os ataques de paranoia dela, mas ela também era muito intensa na forma como ela me apaixonou pelo cinema, pelo teatro, pela literatura, pela política. Ela era muito politizada, muito intelectual, ela me introduziu no mundo das artes desde muito cedo e de uma forma muito intensa também. É uma pessoa que me marcou tanto, era muito difícil lidar com essas memórias. Então eu chorei muito escrevendo esse filme, depois chorei muito filmando. Foi um processo bem emocional. O filme gira entre as diferentes gerações de mulheres.

Como foi trabalhar essa perspectiva do cotidiano que possui tantas camadas?

Eu gosto muito de falar sobre mulheres. Quase todos os meus filmes têm personagens principais mulheres. E eu acho que isso tem a ver com essa formação que eu tive justamente que está no filme, de uma família de mulheres muito fortes. Eu sempre era o mais quietinho, ficava no meu canto só observando. Então, eu sempre fui um observador dessas mulheres. Eacho que esse cotidiano, que possui tantas camadas, era o cotidiano da minha casa. Eu só ficava observando, observando, observando, muito interessado, muito curioso por aquelas pessoas mais velhas do que eu. Minha irmã também era sete anos mais velha do que eu e eu ia aprendendo com elas, acho que foi daí que veio o cotidiano do filme. Além disso, o filme retrata um grande ciclo de violências e traumas.

Como foi acessar esse lugar para a produção do filme?

Acessei as memórias da minha mãe, tanto as memórias boas quanto as memórias ruins, e os traumas foram muito difíceis de acessar. Eu chorei muito fazendo, escrevendo, e eu acho que eu posso contar, por exemplo, quando eu estava filmando a cena do filme da briga, a grande briga após a tempestade entre mãe e filha, entre Malu e Joana, eu chorei muito porque a gente ia repetindo a cena, as atrizes iam ficando cada vez melhores, e cada vez mais agressivas uma com a outra, cada vez mais forte a cena. Teve um take, que eu acho que foi o sétimo take, que eu fiquei muito emocionado, chorei muito. Mas eu senti que elas ainda podiam ir mais um pouco, que ainda estavam um pouco respeitosas uma com a outra. Fui falar com elas só que quando eu cheguei pra falar com elas, estava banhado em lágrimas. E elas me viram e tomaram um susto e eu percebi que eu não precisava dizer nada, elas já tinham entendido. E aí elas foram e fizeram a cena no oitavo take, que é o que ficou no filme, que é muito forte. Para mim é a coisa mais bonita do filme. Elas estão muito mexidas, elas entenderam me vendo molhado de lágrimas, que o buraco era mais embaixo.

Como você chegou na escolha do elenco? Quais eram as principais características que precisavam existir em cada uma das atrizes?

Eu fiz todo o trabalho de elenco desse filme sozinho. Eu gosto muito de trabalhar com atores e com atrizes, venho de uma família de atores, então estudei desde muito cedo, tive muitos estudos de direção de atores desde muito cedo, dou aula de direção de atores. Eu cheguei nessas atrizes através do teatro, são atrizes e atores de teatro. Eu achei que para esse filme era particularmente importante ter atrizes e atores de teatro, porque pessoas de teatro em geral, atores de teatro em geral, são atores acostumados a aprofundar muito num personagem. É uma coisa de você pegar um personagem e ir fundo, estudar, muito tempo, pensar de várias formas diferentes, dialeticamente, de vários pontos de vista diferentes. Então, eu acho isso muito importante para esse filme, que é um filme de personagens profundos, muito complexos. O trabalho com eles foi um trabalho de improvisações. Eu usei uma técnica básica de Stanislavski que é o método das ações físicas, em que a gente improvisa muito as cenas, sem decorar o texto. A gente não decora, a gente só improvisa, lê rapidamente o texto na mesa, entende qual é a situação e improvisa sem o texto decorado a situação. E assim a gente foi improvisando todas as cenas do filme. Através das improvisações, a gente conseguiu entender emocionalmente cada uma daquelas situações, aquelas relações, aqueles objetivos, tudo foi sendo entendido emocionalmente mais do que racionalmente. Uma vez esse processo terminado, eu dei para elas uma semana sem ensaios para elas decorarem o texto, que aí sim, tinha que ser absolutamente decorado. Dessa forma, a gente pôde falar o texto pela primeira vez, o texto mesmo decorado, a primeira vez que ele foi dito foi com a câmera rodando. Então você consegue ter um frescor de um texto que está sendo dito pela primeira vez com a câmera rodando, sem deixar de ter a profundidade do estudo do personagem, das relações. A ditadura militar percorre a personagem e suas escolhas. Ainda Estou Aqui e Malu são dois grandes filmes brasileiros que retratam o tema de forma muito diferente.

Qual a importância de realizar histórias que falem sobre esse período?

É essencial que o cinema brasileiro, e que a sociedade brasileira como um todo, fale sobre a ditadura militar, porque nós vivemos num país que, infelizmente, não lidou como deveria com a sua ditadura. Por exemplo, na Argentina, todos os ditadores e todos os militares criminosos que prenderam, torturaram e mataram foram presos. Houve um grande processo na Argentina em que foram presos muitos e muitos dos militares responsáveis por todo o horror que aconteceu lá. E aqui no Brasil, teve essa coisa bizarra que foi a anistia, em que se anistiaram simplesmente esses criminosos terríveis, sanguinolentos. É uma coisa terrível o que aconteceu aqui, porque essas pessoas mataram, torturaram e estão por aí até hoje, os que ainda estão vivos. O Brasil ainda precisa ter um enfrentamento dessa ditadura militar. Acho que a Comissão da Verdade foi o início de uma tentativa de fazer algo assim, mas tem que ir muito mais longe. Então acho que nós, artistas, temos uma obrigação moral de falar sobre isso, de levantar esse assunto, de cobrar a sociedade que a sociedade eles têm que pagar. Esses criminosos têm que pagar pelo que fizeram.

Como você se sente tendo seu primeiro longa-metragem vencendo o Festival do Rio, sendo indicado a 22 festivais nacionais e internacionais e sendo sucesso na crítica?

Eu estou muito emocionado com tudo que está acontecendo com esse filme. A gente estreou no Festival de Sundance em janeiro, passamos por vários festivais. Eu estou conhecendo o mundo através desse filme. Eu já fui para a África do Sul, Nova York, Cidade do México. Nesse exato momento, enquanto estou dando essa entrevista, eu estou em um hotel no Cairo, no Egito, e no final do ano eu ainda vou para Índia. A resposta do público tem sido incrível, a gente ganhou vários prêmios no Festival do Rio, mas o maior prêmio que eu ganhei com esse filme está sendo a resposta do público ao filme. Na África do Sul, uma mulher no debate falou: eu estou com dificuldade de fazer uma pergunta para você, porque eu ainda estou tremendo com o final do filme. No Rio de Janeiro e no São Luís, em Recife, vieram várias pessoas chorando falar comigo depois do filme, me agradecendo pelo filme. As atrizes têm sido paradas por pessoas nos festivais que viram o filme e ficam querendo conversar com elas e contar histórias sobre suas mães, sobre suas avós. As pessoas se reconhecem muito no filme, se identificam muito com essas histórias. Eu recebo muitas mensagens, desde pessoas, artistas, intelectuais, que eu admiro muito, até pessoas totalmente desconhecidas de todas as áreas que me mandam mensagens pelo Instagram, pelas redes sociais, me agradecendo pelo filme, falando o quanto elas ficaram mexidas. Então, essa resposta do público tem sido muito emocionante, tem sido o maior prêmio que a gente pode receber.

 

postado em 24/11/2024 10:42
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